“Mas resta-me a tua escuridão silenciosa.” João Morgado, «Diário dos Imperfeitos»
Somos um país bafejado pelo clima. Mais de 300 dias de sol por ano e uma luminosidade ímpar – lembremo-nos da fotografia de Acácio de Almeida, no filme A Cidade Branca, do suíço Alain Tanner (1983). Cativa quem vem de fora, turistas sensíveis, estudantes Erasmus... Mas não temos sabido tirar partido dessa riqueza que, ano após ano, nos cai de mão beijada. A energia solar continua residual: apenas 1,5% do que consumimos tem origem nas centrais fotovoltaicas. Em muitas situações do quotidiano, acende-se a luz, escusadamente, apesar de o sol brilhar. Nas escolas da nossa ‘modernidade’, essa é uma prática recorrente dos professores da pedagogia high-tech. O Prof. S. tinha a sorte de leccionar num edifício a que fora atribuído o Grande Prémio Nacional de Arquitectura. Siza Vieira, o autor, rasgou o betão com amplas portadas-janelas rectangulares e outras ousadas aberturas, de ‘geometria variável’, por onde jorra a luz que dá àquele espaço público, de dois pisos em forma de U, uma alvura própria das terras de além-Tejo. Os visitantes – na grande maioria, estudantes estrangeiros de arquitectura – circulam curiosos pelo interior e exterior do edifício, fotografando até à exaustão os longos corredores, as varandas cobertas (e abertas), o amplo átrio, o bar envidraçado. Vão registando (as)simetrias das colunas, os acessos de desníveis acentuados, e deslumbrando-se, a cada passo, com as soluções arquitectónicas e estéticas encontradas; não lhes escapa recanto nem detalhe. Só não se atrevem a entrar nas salas de aula. Se o fizessem, precisariam de flash pois estariam, literalmente, no ‘quarto escuro’, sem saberem que maldade haviam feito. A apropriação desses espaços, para o uso da tecnologia educativa hegemónica – o powerpoint –, tem barrado as entradas de luz com a instalação de duplos estores (de rolo opaco, os mais recentes). Lá dentro, só se divisa o foco do data-show; estudantes e professores na penumbra... Aulas transformadas em salas de cinema sem filmes de acção – quando muito, ‘documentários’ de etnografia escolar. Aulas à meia-luz ou mesmo na escuridão. A voz do professor e as imagens (de texto) projectadas sem cessar. Dialoga-se, talvez, mas ninguém fala olhos-nos-olhos. Ausência de um genuíno face-to-face. Lá fora, o sol quente e forte a chamar para o intervalo na green beach, a que (quase) só os estudantes Erasmus dão valor. Não há luz artificial que substitua o astro-rei!
Efeitos colaterais. Quando o Prof. S. mete a chave à porta de uma das salas de aula tem a sensação de estar a entrar na velha ‘câmara escura’ onde revelava as fotografias a preto e branco. A primeira coisa que faz é tentar abrir o estore, na procura de uma nesga de luz natural vinda da varanda, agora sempre deserta, por imposição das últimas direcções (ao arrepio dos objectivos de Siza), para evitar o ‘ruído’ perturbador da normal actividade lectiva enquanto se permite o barulhento corta-relva em períodos lectivos! Com o tempo, os estores vão-se estragando, mas ninguém se rala muito com isso, pois ou não há dinheiro para os arranjar ou deixaram de lhe sentir o préstimo; estão sempre em baixo, mantendo a sala no lusco-fusco para ‘sessões contínuas’ de pedagogia amodorrada; aquele ambiente convida ao sono (prolongado da manhã) ou à sesta (pós almoço). Efeitos colaterais dos ‘métodos activos’... E os estudantes também não se importam: não alteram a disposição da sala, não abrem as janelas, não acendem as luzes. Desvalorizam a influência do contexto na aprendizagem. Agem como se a aula fosse do professor; formatados pelo Básico-Secundário, consideram que a iniciativa cabe ao professor que põe e dispõe. Tudo ao arrepio da utopia formulada por Sebastião da Gama no Diário: “a aula é nossa”. Quando o Prof. S. se desloca para a supervisão de estágios, o panorama com que se depara não difere muito. As estagiárias, agora nas escolas públicas do 2º Ciclo, reproduzem – seguindo os princípios do isomorfismo – os métodos didácticos dos seus mestres. Mal passam a ombreira da porta já estão a ordenar: baixem os estores! Segue-se mais uma aula de powerpoint... E também assim se vai hipotecando a possibilidade de vermos emergir ‘mentes brilhantes’. Tudo tende para o baço...
Luís Souta
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