Não esperamos ser palhaços e acrobatas, e a sermos alguma coisa (mais vezes do que gostaríamos, e talvez injustamente), seremos antes aqueles que, como Ruy Belo, pertencem a um país, pedaço de terra que o mar não quer.
A notícia veio por e-mail: a Maria suicidara-se. Não era uma pessoa que nos fosse próxima, mas era uma colega de profissão com quem nos cruzávamos algumas vezes, de forma afável e cordial. A última vez que a víramos fora num congresso; tínhamos tomado café juntos, durante um dos intervalos, e, além da conversa de circunstância, acabamos por tocar em matérias mais sensíveis que o recomeço dos trabalhos interrompeu. A promessa de, mais tarde, voltarmos a abordar tais assuntos nunca mais será cumprida. Porque desististe, Maria?
O que teria acontecido? A notícia de uma doença rara e incurável? O antecipar da morte que a desesperança acicatou? Uma má decisão ou um percalço na vida, daqueles que nos leva para becos cuja saída pensamos que não existe? Porquê? As perguntas foram-se avolumando nas nossas cabeças incapazes de encontrar uma explicação plausível para um tão doloroso ato. Os tempos difíceis com que convivemos são tempos suficientemente angustiantes para esquecermos o que Maiakowsky escreveu – “Não acusem ninguém da minha morte (...). O defunto odiaria isso. O que teria acontecido? Uma desilusão fatídica e impensável, um problema pessoal, daqueles que se escondem de tudo e de todos, quantas vezes de forma tão eficaz que até se escondem de nós próprios? Não nos parecia estar deprimida, mas o seu caráter reservado poderia muito bem camuflar aos olhos de estranhos a sua triste desesperança. Sabemos que há quem sofra em silêncio os grandes, pequenos ou quase invisíveis gestos tiranos que nos amaldiçoam os dias; os cartões magnéticos que começaram a ser usados no princípio e no fim de cada aula; as circulares cinzentas e imperativas que nos menorizam; a competição surda que nos faz esquecer quem somos e ao que viemos; os jogos de poder, mais subtis e sedutores ou mais descarados e autocráticos, que hoje atropelam – como julgámos que nunca fosse possível – as nossas vidas. Por fim, resta a mágoa, que é diretamente proporcional à ingenuidade e às ilusões que fomos acalentando ou, quem sabe, à inveja que a nossa solidão alimenta; essa mágoa que, afinal, talvez possa matar, de forma silenciosa como uma doença ou de forma estridente como um enforcamento ou um tiro na cabeça. Porque desististe, Maria?
Será que estavas farta do (re)produtivismo atroz e inconsequente e/ou do saltitar de congresso em congresso e/ou de grupo de pesquisa em grupo de pesquisa que o acumular de milhas de avião permitem comprovar? Estavas farta, não querias ou não eras capaz de participar neste jogo? Como Pavese, também pediste perdão e a todos perdoaste ou, como Florbela Espanca, limitaste-te a ser pó, cinza e nada? Será que não aguentaste os paradoxos insuportáveis deste tempo que nos cabe viver? Será que temias, como nós, o dia em que iremos ouvir alguém reivindicar a pena de morte para quem seja contra a pena de morte? Terá sido o teu suicídio a única resposta que encontraste para denunciar o mundo das pós-verdades em que nos atolamos ou, pura e simplesmente, decidiste recusar partilhar o enredo da tua vida com Deus, os médicos, a velhice ou o acaso? Porque desististe, Maria?
Podendo ser verdade que a tua decisão nada tem a ver com o absurdo dos dias que correm, correspondendo antes a um ato que remete para uma intimidade que não conhecemos, não podemos e não queremos desvendar, também é verdade que a nossa impotência perante esse absurdo pode justificar que, silenciosamente, pensemos que o teu suicídio poderia ser o nosso suicídio. Provavelmente, esta espécie de desabafo, a pretexto do teu gesto, é mais sobre as nossas vidas do que acerca da tua morte. Não esperamos ser palhaços e acrobatas como os que Mário de Sá-Carneiro solicitava para o seu próprio funeral, e a ser alguma coisa, seremos – mais vezes do que gostaríamos, e talvez injustamente – antes aqueles que, como Ruy Belo, pertencem a um país, pedaço de terra que o mar não quer.
Ariana Cosme e Rui Trindade
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