Página  >  Opinião  >  O Fantasma de Canterville

O Fantasma de Canterville

Há que formar públicos para o teatro. Não por mero interesse comercial, não porque exista uma moda cultural que o assume, mas, sobretudo, porque o teatro pode proporcionar um desenvolvimento intelectual dos indivíduos, preparando-os para uma intervenção saudável e eficaz no mundo em que vivem: familiar, laboral ou, em termos genéricos, social.

1. Remontando praticamente ao aparecimento do Homem e das representações por ele criadas, o teatro é bastante completo e realiza-se, na maior parte das vezes, de forma interdisciplinar, combinando, além das expressões corporal e dramática (os conceitos tocam-se e são por vezes difíceis de definir), o que parece exclusivo de outras artes, como a música, a pintura, a dança, a chamada arte de bem dizer e, hoje em dia, também uma série de subcategorias que se aliaram sobretudo às novas tecnologias áudio, vídeo e informática.
Esta enorme riqueza não pode continuar a ser ignorada pelo Estado português ao nível do sistema educativo. Apesar de algumas experiências curriculares raramente avaliadas em profundidade pela própria tutela (currículos dos 1º e 2º ciclos pouco definidos, Oficina de Teatro no 3º Ciclo, Oficina de Expressão Dramática no Secundário) e das quais algumas foram postas de lado sem se perceber porquê, ou com que interesses, podemos continuar a afirmar que tem havido muito pouca vontade política para proporcionar às crianças e aos jovens um bom desenvolvimento integral a este nível. De facto, a compreensão e a interpretação de textos da dramaturgia proporcionam, com alegria e experimentação, além da leitura isolada (que também tem o seu valor), o desenvolvimento de inúmeras competências no âmbito das áreas já citadas, mas também em termos das relações interpessoais, nomeadamente na capacidade de comunicação com os pares e em público, no desenvolvimento do espírito de grupo, da solidariedade e outras.

2. O que deflagrou esta reflexão foi Óscar Wilde, dramaturgo irlandês do século XIX, e a sua novela «The Canterville Ghost», adaptada a texto dramático e apresentada pelo grupo de teatro do Agrupamento de Escolas de S. Pedro de Rates no Auditório Municipal da Póvoa de Varzim. O que importa destacar deste evento, que, como é óbvio, ocupa uma grande parte de trabalho ao longo do ano, muitas vezes não contabilizada, é:
- a mobilização da comunidade escolar: ao lado dos alunos que estudaram muito bem os seus papéis e ensaiaram não sem algum cansaço, têm a coragem de subir ao palco professores, técnicos superiores e até um subdiretor! A interação em palco entre alunos e adultos proporciona – neste jogo de faz-de-conta, entre deixas que necessitam da ajuda do ponto e ‘buchas’ salvadoras que fazem reatar a ação quando tudo parecia estar perdido – uma cumplicidade tamanha que só pode ter consequências altamente positivas e salutares no campo de todas as aprendizagens;
- a implicação da comunidade educativa: numa plateia completamente cheia de pais, avós, antigos alunos e trabalhadores e outros, ao lado do diretor, ouve-se todo o tipo de comentários que mostram que todos sabem que aquele é o Agrupamento dos seus filhos, mas também o seu; todos participaram na busca de adereços de cena, para que tudo estivesse a rigor; há os que sabem partes dos papéis dos filhos de cor; há os que têm toda a curiosidade em saber como resultou, afinal, o que estava por resolver. E há, até, quem espere pelo mesmo ator que já tinha visto no verão anterior, noutro papel: adultos que querem viver aquele momento em que se riem a bandeiras despregadas, que querem tremer com medo das correntes do fantasma Simon Canterville, que querem, também, participar na diversão com os seus filhos;
- o arrojo com que se pega num texto que nos mostra uma família que, afinal, não tem medo de um fantasma com séculos; com que se transforma esta mesma personagem, através de uma comicidade fantástica, numa figura simpática, desmistificando medos que as crianças, muitas vezes, transportam dentro de si, sem que disso nos apercebamos; e como se ousa, porque absolutamente necessário, reformular ligeiramente o texto referente às personagens de etnia cigana e afirmar princípios de respeito pela diferença e de abertura à inclusão;
- finalmente, realçar que, nas escolas, são os vários trabalhadores e as diversas (e muitas) trabalhadoras que, com as suas lideranças, atingem níveis de qualidade didática e pedagógica, mesmo que não tenham toda a formação na área, conheçam pouco Stanislavsky, Brecht, Artaud ou Grotowsky ou outras novas teorias.
O teatro também sai da ‘alma’. Bem pode o Ministério da Educação refletir sobre o apoio necessário a estas iniciativas. Quanto ao Agrupamento de Escolas de S. Pedro de Rates, está de parabéns!

José Rafael Tormenta


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo