A heterogeneização dos públicos na sequência do alargamento da escolaridade obrigatória e a força compressora da avaliação sem limites sobre os resultados escolares e sobre os professores por eles responsáveis submetem o tempo escolar a contradições pedagógicas insanáveis.
O estudo sobre a organização do tempo no interior do sistema de ensino português, publicado em março pelo Conselho Nacional de Educação («Estudos. Organização Escolar - O Tempo») deve merecer-nos a melhor atenção, tanto pelos aspectos positivos que aí são postos em relevo como por outros que, não sendo necessariamente negativos, não são, todavia, objeto do questionamento que se impõe. Entre os primeiros, há que referir o excelente estudo comparativo que nos é apresentado, confrontando, no plano interno, os valores dos diferentes níveis do sistema de ensino e, no plano externo, a sua expressão face à realidade de outros países, designadamente da OCDE. É assim que ficamos a saber que os dois primeiros ciclos são os mais sobrecarregados de todo o sistema de ensino em termos do uso do tempo, e não apenas entre nós; no exterior, somente a Dinamarca nos ultrapassa. Tenha-se, todavia, em atenção que, para tal, concorre expressivamente a componente do setor não obrigatório do ensino, como as atividades de enriquecimento curricular. A par destes aspetos, outros são igualmente relevantes, como a distribuição temporal das disciplinas e o respetivo peso curricular no espaço semanal, bem como a formulação de juízos sobre o tipo de equilíbrio a estabelecer entre tempo de aulas e tempo de férias. A este propósito, torna-se um tanto problemático para a nossa imagem o confronto com a maioria dos países parceiros. O caráter predominantemente estatístico do estudo – talvez uma imposição inevitável, dada a natureza do objeto em questão – terá contribuído para o esvaziamento do sentido pedagógico do tempo, aqui admitido como supostamente secundário face à monumentalidade administrativística das tarefas inscritas no tempo escolar. Nestes termos, a linguagem estatística é a única que se ouve. Daí que o mundo dos professores, enquanto profissionais, tenha dificuldade em identificar-se com este tipo de abordagem, uma vez que o seu mundo terá de passar por outro tempo – o tempo da relação – e não simplesmente por este, o da linearidade.
Uma outra cultura. A massificação e a consequente heterogeneização dos públicos escolares na sequência do alargamento da escolaridade obrigatória, por um lado, e, por outro, a força compressora da avaliação sem limites sobre os resultados escolares e sobre os professores por eles responsáveis, submetem o tempo a contradições pedagógicas insanáveis, a tal ponto que, conforme o estudo revela, não há diferenças entre escolas com autonomia e escolas sem autonomia na gestão do tempo. Esta ausência de significado entre as duas modalidades de gestão do tempo escolar não pode passar sem questionamento, uma vez que a atribuição do poder de autogestão do tempo relativamente às respetivas escolas pretende corresponder ao pressuposto de que a disponibilização do tempo daí derivada exige a utilização subjetiva desse mesmo tempo na personalização da relação pedagógica e, logo, na resolução dos problemas subjacentes. Nestes termos, não basta inscrever administrativamente nos horários escolares uma distribuição mais generosa e, porventura, mais racionalizada do tempo para produzir os efeitos desejados, como se lhe estivesse adstrita uma mudança automática na qualidade da relação pedagógica dos professores. O que é suposto na autonomia da gestão do tempo é a sua apropriação subjetiva, ou seja, a sua utilização à medida das dificuldades de aprendizagem e formação dos alunos – o que supõe um outro modelo de professor, que consagre os princípios da partilha, da cooperação, da responsabilidade coletiva, capazes de transformar o espaço escolar num espaço de vida, sensível à diferença, à interajuda e à humanização. Uma outra cultura profissional é, então, inerente a uma nova administração do tempo, pressupondo que o trabalho em ato implica o exercício da reflexão consciente sobre o significado da relação pedagógica entre o eu e o outro. É este exercício que liberta os professores da condição de simples objecto do tempo e lhes garante o estatuto de sujeitos duma temporalidade com sentido.
Manuel Matos
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