Os contextos em que se desenrola a inclusão têm de ser encarados como contextos de desigualdade, conflito e exclusão. Pensar a inclusão ignorando qual o pano de fundo em que ela se move é um grave erro de análise; pode conduzir à adoção de políticas assistencialistas, mas não a políticas inclusivas.
É inevitável que os conceitos, se querem ser percetíveis e apropriados por grupos latos populacionais ou profissionais, acabam por sofrer um processo de simplificação que, muitas vezes, desvirtua o seu significado original. O conceito de inclusão é um bom exemplo de como as simplificações conduziram a ser tão mal-entendido. Há uns bons anos, escrevi um artigo em que procurava desmontar e recuperar alguma da complexidade e abrangência deste conceito (“Dez ideias malfeitas sobre a educação inclusiva”). Não regressarei aos argumentos que então usei, mas gostaria de revisitar o conceito de inclusão, quando continua a ser, por vezes, tão mal utilizado. Uma questão central é encarar a inclusão como um processo, como apontou a UNESCO em 2008. Tanto se ouve falar de professores inclusivos, escolas inclusivas, metodologias inclusivas, pais inclusivos, etc., que se passa a ideia de que a inclusão é uma espécie de conversão... Uma epifania que se nos revela e que, de repente, as pessoas e as instituições se tornam inclusivas, mudam de estado. Esta perspetiva da inclusão como ‘conversão’ é muito enganadora e até perniciosa. Enganadora, porque, para se poder falar de ambientes inclusivos, não basta que algo mude, é preciso que muita coisa mude; não é apenas a ‘atitude do professor’ ou o ‘plano da escola’ que decide a inclusão. Colocar o ónus da criação de ambientes inclusivos numa pessoa, numa classe profissional, numa organização ou numa instituição é mesmo pernicioso, porque sinaliza a responsabilidade de alguns e desresponsabiliza a ação de muitos – a inclusão é um processo longo (talvez, mesmo, permanentemente inacabado) em que participam variados atores, atuando muitas vezes de forma assíncrona, o que dificulta mais o avanço e o desenvolvimento de ambientes inclusivos. A inclusão é, pois, um processo inscrito num tempo, em protagonistas e recursos.
Na linguagem simplificada utiliza-se o termo inclusão como se a Inclusão fosse um fenómeno circunscrito. Diz-se que fulano “está incluído”, que aquela é uma “estrutura inclusiva”, etc. Quando ouvimos estas avaliações sempre nos devemos perguntar qual é o conceito de inclusão e qual é o critério de “corte” que permite considerar algumas pessoas, factos e organizações como inclusivas e outras como não inclusivas. E aqui encontramos uma grande quantidade de processos que, não sendo inclusivos, se camuflam de inclusivos. Como exemplo, cito apenas dois. Um é quando se verifica que nada mudou, exceto que se criou um serviço especial, uma estrutura “à parte” para acolher determinadas pessoas em determinadas circunstâncias; estas estruturas “especiais” não são inclusivas porque, ao se assumirem como especiais, restringem a sua utilidade a certos tipos (específicos) de pessoas. Ora, os ambientes inclusivos pressupõem uma adequação de serviços de forma a servirem todos e não só alguns. Outro exemplo é a tolerância. Muitas vezes confundem-se estruturas inclusivas com estruturas tolerantes; a tolerância é uma atitude indubitavelmente positiva, no sentido em que “desculpa” comportamentos que reconhecemos diferentes dos nossos, mas, ao mesmo tempo, é uma atitude eivada de superioridade – no sentido em que é uma prerrogativa de alguns relativamente a outros – e de comiseração, como se o comportamento dos outros não necessitasse de ser entendido, mas somente encarado como inevitável e incompreensível. Assim, quando dizemos que alguém está incluído, vale a pena perguntar se essa pessoa está incluída porque se criou um ‘gueto’ para ela ou porque se desistiu de a influenciar e de negociar com ela plataformas de entendimento e de compreensão das singularidades em presença.
Uma última reflexão refere-se aos contextos em que se desenrola a inclusão. Estes contextos, da sociedade contemporânea, são contextos que, à partida, têm de ser encarados como contextos de desigualdade, conflito e exclusão. Pensar a inclusão ignorando qual o pano de fundo em que ela se move é um grave erro de análise e pode conduzir à adoção de políticas assistencialistas, mas não de políticas inclusivas. Tomemos o exemplo da inclusão na Escola. Não é possível entender as dificuldades da inclusão se não conceptualizarmos a Escola como uma teia de conflitos e desigualdades. Se pensarmos que a Escola é um espaço harmónico ou que, pelo menos, aspira à harmonia, no sentido de ausência de conflito e de supressão de desigualdades, então teremos uma inclusão ‘boazinha’, isto é, um processo que se satisfaz com pouco, que almeja pouco e, sobretudo, um processo ferido na sua sustentabilidade, porque não conseguirá certamente resistir às dinâmicas constantemente complexas e conflituais da interação no meio escolar. A inclusão talvez seja, antes de mais, um processo de aquisição de recursos que permitam a qualquer um de nós assumir uma identidade de pertença a um qualquer grupo. Não é algo que nos é dado, algo que nos é tolerado, algo separado da complexidade das nossas vidas. O desenvolvimento de processos de inclusão pressupõe, deste modo, não só discursos ancorados em direitos e éticas de diversidade, mas, também, de uma conceção de recursos que sejam pensados de forma inclusiva, isto é, recursos pensados para todos, para – como se diz dos aperitivos – pôr no centro da mesa e todos se poderem deles servir.
David Rodrigues
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