ACTA EST FABULA. Foi finalmente editado o segundo dos cinco volumes que compõem «Acta Est Fabula», o livro de memórias de Eugénio Lisboa (EL), começado a escrever quando o autor ia pelos 80 anos, tendo deixado para trás este segundo volume, pela simples razão de lhe parecer prioritário desrespeitar a ordem cronológica, receoso de não vir a dispor de tempo para abordar assuntos a seu ver de maior relevância. Com efeito, foram publicados quatro tomos antes de o ‘patinho feio’ da série poder ver a luz do dia. Felizmente, EL dispôs de tempo e saúde para colmatar a fratura diacrónica, não obstante tratar-se de ocorrência quase em simultâneo com o falecimento de sua esposa, Maria Antonieta Lisboa, que, além de dedicada companheira, foi uma corajosa colaboradora no trabalho literário do autor. No entanto, antes de partir, não deixaria de ler e comentar a parte diferida. Modalidade pouco cultivada em Portugal, as “memórias” de EL espalhadas pelos cinco livros, além de reavivarem o género por cá, dão existência material ao propósito expresso no preâmbulo: “Chegado ao ocaso da vida, vem-me o desejo sentimental de voltar atrás, recordando os momentos que mais me tocaram e, também, as oportunidades que perdi... [o meu passado é só meu e só eu sou capaz de o sondar em toda a sua profundidade].” As edições autónomas foram-se sucedendo, ficando para trás a ferida lacunar, mas não insuturável, como agora se sabe. Nessas páginas, EL abarca um universo de experiências profissionais em que há de tudo: duas viagens a Portugal, uma para se licenciar em engenharia electrotécnica no Instituto Superior Técnico, a outra para fazer o serviço militar, que lhe proporcionaria ter conhecido pessoalmente José Régio, de cuja literatura se tornaria um dos mais empenhados estudiosos; gestor de uma companhia petrolífera em Lourenço Marques e na África do Sul, onde foi também docente, tal como na Suécia e mais tarde na Universidade de Aveiro; presidente da Comissão Nacional da UNESCO; Conselheiro Cultural em Londres, onde desenvolveu um profícuo trabalho de divulgação das nossas Letras. A par desta febril atividade ia acumulando bibliografia na área do ensaio que o levou à Academia das Ciências, ao doutoramento Honoris Causa pelas universidades de Aveiro e Notthingam e à distinção com várias condecorações e prémios, avultando aquele que premeia a produção biográfica, criado pela Associação Portuguesa de Escritores. De salientar, ainda, uma curta, porém apaixonante, incursão na poesia, e quem sabe se não andará por aí um romance em fermentação. Num estilo fluente e capitoso, nalguns lances muito semelhante, justamente, aos dos grandes romances, «Acta Est Fabula» não deixa de ser um olhar acutilante sobre o nosso tempo, resultando da visão de uma testemunha que, ao desvendar-se e ao mesmo tempo desvendando, por vezes rasgando-se e rasgando, questiona até ao fim o mundo de contrastes que lhe coube em sorte, convocando outros para o teste de reconhecimento e identificação da época e dos lugares onde se fixou a lembrança do que os fez felizes ou os atormentou. «Acta Est Fabula» (Opera Omnia, 2016) é o relato de mundivivências mais perto da sociabilidade humanizante global do que fruto solitário de peregrino ensimesmado. Este será um marco dos mais significativos no conjunto da obra de EL, cidadão do mundo, viajante intelectual curioso, incansável e irresistivelmente interventivo.
CLAVE DE SOL / CHAVE DE SOMBRA. Teresa Martins Marques (TMM) ocupa-se igualmente da memória, não da sua, mas da do seu antigo professor, o poeta David Mourão-Ferreira (DMF), plasmando num livro de 816 páginas uma enorme soma de informações inéditas, a que só alguém íntimo da obra e da vida privada do poeta poderia ter tido acesso. TMM conheceu a rara oportunidade de lhe ter sido confiada a organização do espólio de DMF entre 1997 e 2004, daí saindo a tese de doutoramento com o título acima, sem hesitação reconhecida como documento indispensável à identificação e fruição do complexo labirinto davidiano. Deverá questionar-se, talvez, se a exegese crítica da autora abarca sempre da melhor maneira o portentoso legado ao seu dispor ou se as longas transcrições e citações roubam espaço ao desenvolvimento do pensamento erudito que ganharia, porventura, em exprimir-se encolhendo esse pujante aparato referencial. Todavia, os eventuais inconvenientes daí decorrentes são compensados pelo acesso do leitor a informação privilegiada – a troca de correspondência entre DMF e Álvaro Salema por causa de Mário Dionísio constitui um dos muitos exemplos preciosos do livro. E como os extratos da obra literária foram escolhidos com base em critérios muito se- veros quanto à sua função comunicacional, «Clave de Sol / Chave de Sombra» (Âncora Editora, 2016) constitui simultaneamente um trabalho de inventariação e interpretação único da obra de DMF e de identificação dele próprio enquanto personagem da vida real, pela quantidade de espelhos que as refletem. Sobra um repto a quantos se sintam tentados a frequentar as fascinantes trajetórias da vida e da obra do poeta, seguindo o sugestivo plano de viagem proposto por TMM.
Júlio Conrado
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