Página  >  Opinião  >  Desmontando o texto poético na sala de aula

Desmontando o texto poético na sala de aula

Recuperar o conteúdo lúdico da poesia no trabalho escolar significa resgatar sua natureza original. O que a linguagem poética faz é jogar com as palavras. O jogo com o poema é sua desconstrução e reconstrução, exercício de liberdade poética.

Nas classes iniciais, antes mesmo da alfabetização, quando se estabelecem os primeiros passos para a aproximação com a poesia e quando o professor é o leitor intermediário, o trabalho com a linguagem é predominantemente oral (e mnemônico). A memorização de quadras, geralmente com apoio em narrativas, tem sua razão de ser nesse momento. Juntam-se aqui, para o êxito do processo, diversos elementos como o ritmo, a repetição encantatória, apoiados no desejo natural da criança de “ouvir histórias”.
Recuperar o conteúdo lúdico da poesia no trabalho escolar significa resgatar sua natureza original. O que a linguagem poética faz é jogar com as palavras. O jogo com o poema é sua desconstrução e reconstrução, exercício de liberdade poética. A criança já alfabetizada pode exercer sua imaginação decompondo textos (“armar” poemas), relacionando o poema a outras formas de expressão, ouvindo-o e repetindo-o, descobrindo seus paralelismos, reinventando-os.
O poema é um discurso fechado formando um universo de linguagem, reinventando a cada vez suas regras. O “desmontar” do texto poético significa compreender estas regras, não em sua teoria, mas em sua evidência prática, na realidade da estrutura verbal organizada.
Essa concepção da poesia, na escola, evidentemente, só pode se realizar em um ambiente de liberdade e de criatividade. Essa estratégia só pode se inscrever como prática num conjunto maior de que participem os ateliês de teatro, de marionetes, de desenho, colagens, canto, em que a criança pode se expressar livremente sem outra limitação que a de realizar a tarefa a que se propôs.

Poesia, melodia, jogo. No que tange ao campo sonoro do poema, além do ritmo, a melodia é outro aspecto essencial. A percepção dos tons melódicos de um poema pode ser desenvolvida tanto quanto essa se faz com relação às atividades de sensibilização musical. Não menos importante é a percepção do cruzamento da palavra e da canção que constitui uma ponte para toda uma exploração ao nível dos textos musicais já conhecidos das crianças em outros contextos.
O apoio no aspecto melódico, recorrendo ao repertório já conhecido das crianças, promove a associação da poesia à música, aliás, sua forma primitiva. Na poesia que pode ser selecionada para níveis mais avançados de escolaridade, pensando já nos adolescentes, não é possível esquecer que a moderna música popular vem de braços com a poesia.
Perceber a possibilidade dessa aproximação, utilizando esses textos como corpus literário, significa falar numa linguagem direta ao jovem, caminho a que o professor não pode se furtar. Refaz-se, por via do alargamento do conceito de texto literário, o elo entre poesia e música, reforçando-se a própria natureza do fenômeno poético.
Insiste-se nesse ponto, para a necessidade de que o professor tenha clara a noção de que ao conceito de literatura é preciso dar um estatuto mais amplo, sendo fundamental, para isso, que ele saiba que, ao tratar de “poesia” em sua sala de aula, todas as formas de arte e comunicação podem entrar em jogo.
Qualquer atividade poética destinada aos alunos é dupla: a poesia lê-se, escuta-se, diz-se e escreve-se. A relação entre as práticas da leitura e as práticas da escrita é indivisível, dialética. Qualquer leitor de poesia reescreve mentalmente o poema que lê ou que escuta e deseja quase sempre escrever também ele, para si próprio e para os outros.
Finalizaremos esta breve análise salientando o quão é importante também ter em conta a tão conhecida e já clássica relação entre poesia e jogo. Como mostrou Johan Huizinga: “Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e da inventiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão. Até que ponto se mantém essa qualidade lúdica da poesia à medida que a civilização vai se tornando mais complexa?” (Homo Ludens, 1971).

José Miguel Lopes


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo