A época de Natal é propícia para pensarmos sobre um artefato cultural que parece hoje suscitar pouco interesse entre pesquisadores das ciências humanas, especialmente se considerarmos sua imensa variedade, produção e circulação – o brinquedo.
Ao longo dos séculos, tem sido evidente a atenção aos brinquedos na medida em que são vinculados ao desenvolvimento das crianças. Segundo historiadores, nas antigas civilizações, brinquedos destinavam-se exclusivamente a distração, divertimento e alegria. Bem mais adiante, por volta do século XVII, com a inclusão das crianças na agenda cultural das sociedades e o surgimento da indústria de brinquedos na Europa, estes começam a se transformar em ferramentas para ensinar e educar, perdendo gradativamente o status de “coisas para brincar”. O filósofo John Locke teria sido um dos grandes incentivadores da introdução de brinquedos na educação das crianças. E, já no início do século XX, Walter Benjamin escreveu textos de rara sensibilidade sobre brinquedos, educação e crianças, cuja marca é o caráter pedagógico do brinquedo. De acordo com Carl Honoré, indícios da fabricação de brinquedos que incentivassem o raciocínio e o desenvolvimento de capacidades cognitivas e motoras remontam aos anos 1920, embora tenha sido apenas por volta de 1990 que a indústria de brinquedos decolou, alavancada pelo incremento de uma pressão competitiva sobre as crianças, encaixada na lógica das sociedades de mercado. É fato que brinquedos passaram a concentrar investimentos conforme lhes foi sendo atribuída a capacidade de realçar o poder do cérebro, mas não apenas isso. Ainda na década de 1990, Gilles Brougère, reconhecido educador e estudioso dos brinquedos, comentava a desatenção de pesquisadores às relações entre brinquedo e cultura e a necessidade de intensificarmos investigações acerca do significado cultural do brinquedo. Em nossos dias, afirma Carl Honoré e também a economista Juliet Schor, são impressionantes tanto o investimento na criação e produção de brinquedos, quanto o incremento de sua aquisição pelas crianças. Schor menciona em sua pesquisa uma cifra alarmante relativa a dados coletados até 2003 – nos Estados Unidos da América, as crianças adquiriam por volta de 70 novos brinquedos a cada ano. Obviamente, isso não se deve exclusivamente ao caráter educativo, de socialização e de potencialização da capacidade mental atribuído aos brinquedos, mas, especialmente, ao seu caráter simbólico, à sua riqueza de significados, representações, funções e usos.
Brinquedos contam histórias. Há pouco mais de dez anos, visitei o Museu do Brinquedo sediado na antiga Casa da Vereação de Sintra (Portugal). Foi lá que comecei a pensar ser possível saber histórias sobre a vida em outros tempos e espaços olhando para seus brinquedos. Os incontáveis soldadinhos, em pé ou deitados, com fuzis, acompanhados por canhõezinhos, tanques e aviões, a rechear vitrines do museu com a indicação de serem peças dos anos 1940, nos contavam sobre o período belicoso e sombrio da Segunda Guerra. Por sua vez, os variados, exuberantes e numerosos modelos em miniatura de automóveis dos anos 1950-60 diziam de um tempo de expansão do capitalismo, de celebração do individualismo, de espetacularização da riqueza em muitos países. Em outros corredores, casinhas e bonecas contavam histórias sobre o lugar das mulheres e crianças em diferentes tempos e locais. Ali estava o museu como um livro aberto e os brinquedos como um texto cultural a falar de distintos e contrastantes momentos da vida no século XX. Desta experiência peculiar, associada às muitas pesquisas e leituras que ela suscitou, adveio a inspiração para pensar e olhar os brinquedos como sintomas de uma cultura. Brougère nos incita a considerar os brinquedos como materialização de traços culturais específicos de uma sociedade. Esses artefatos existem, se multiplicam e diversificam porque os membros de uma sociedade os produzem e desejam, e lançam mão deles para inúmeras finalidades. Os brinquedos são, de certa forma, o espelho de uma sociedade, de suas preferências, valores e formas de vida. Além de concentrarem certa vocação pedagógica, eles carregam significados que servem a variadas finalidades como impregnação cultural, socialização, formatação de condutas, assim como o acionamento de consumidores, movimentação do mercado e tantas mais. Em outras palavras, brinquedos estão profundamente implicados com a constituição das subjetividades e a modelagem da vida. O que dizem sobre nós os brinquedos de hoje? O que nos contam as lojas de brinquedos como texto cultural sobre a vida nesse início do século XX? Estas são perguntas boas para pensar, apropriadas, a meu ver, para esse período natalino de lojas lotadas e brinquedos a despencar das prateleiras.
Marisa Vorraber Costa
Nota. O referido Museu do Brinquedo de Sintra encerrou a 31 de agosto de 2014. No mesmo edifício, está agora instalado o NewsMuseum, dedicado às notícias e aos meios de comunicação, inaugurado no dia 25 de abril de 2016.
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