Até que ponto o caráter constitucionalista dos interesses que têm presidido ao movimento das sucessivas revisões, designadamente das pós-revolucionárias, não tem pactuado com questões sociais, culturais e materiais que representam verdadeiros bloqueios para o desenvolvimento do país?
A Constituição da República Portuguesa celebrou 40 anos de existência no dia 2 de abril. Ao longo deste período em que foi cuidando da sua maturidade, não se pode dizer que o tempo que lhe foi permitindo o desenvolvimento tenha sido particularmente tranquilo, designadamente na primeira década. Ciclicamente sujeita a revisões mais ou menos profundas (a primeira ocorreu quase seis anos depois, prolongando-se por ano e meio, e a segunda sete depois desta, em 1989), o tempo em questão passa do confronto marcadamente político a um tempo assumidamente sujeito a reivindicações e a exigências de retaliação económica de cujo processo resulta, em grande parte, a extinção dos traços revolucionários que caracterizaram o 25 de Abril. As revisões seguintes, particularmente as de 1992 e 1997, obedeceram a imperativos e desígnios de integração europeia decorrentes da aceleração e alargamento das condições do Tratado da União. Não obstante o caráter progressivamente contrarrevolucionário que foi caracterizando as diferentes revisões constitucionais (condição, aliás, indispensável à ‘normalização política’ do país no sentido da sua integração no contexto europeu), o processo de revisão constituído pelas sucessivas medidas políticas de ajustamento às práticas europeias nunca excedeu o processamento democrático exigível pela própria Constituição, o que significará a flexibilização das suas disposições e princípios. A constitucionalização do regime – ou seja, a correspondência entre a vontade parlamentar dominante e a sua expressão jurídico-política – acaba por ser, assim, uma das características mais marcantes destes 40 anos de regime. Se, formalmente, podemos aceitar este juízo sem grande contestação, o mesmo não se dirá quanto à concretização e aplicação das disposições legais favoráveis ao desenvolvimento socioeconómico, o que, evidentemente, não depende apenas da natureza institucional dos sujeitos em presença, que formulam o acordo das revisões, mas em grande parte condicionam o funcionamento da relação entre os sujeitos reais e os interesses materiais que constituem o fundo social do país.
INDIFERENÇA CONSTITUCIONAL. Nestes termos, não poderemos questionarmo-nos até que ponto o caráter constitucionalista dos interesses que tem presidido ao movimento das sucessivas revisões, designadamente das pós-revolucionárias, não tem pactuado com questões sociais, culturais e materiais que representam verdadeiros bloqueios para o desenvolvimento do país? A este propósito, e a título meramente ilustrativo, basta invocar a questão perpetuamente adiada do enriquecimento ilícito para nos darmos conta de que as tarefas da Constituição obedecem a propósitos cuja conveniência está muito para além do entendimento do cidadão comum... Este caráter de constitucionalidade predominantemente indiferente aos problemas mais significativos do país pode reconhecer-se em outras áreas que, não sendo tão sensíveis como a acima invocada, não deixa de refletir um comportamento parlamentar muito problemático, dado o silêncio que cultiva face a determinados problemas socialmente chocantes e à realidade económica e cultural do pais que somos. É o que se passa, exemplarmente, com a política adotada no domínio do ensino particular perante a atribuição de subsídios escandalosos a colégios recentemente construídos nas imediações de escolas públicas, quando a Lei prevê expressamente a atribuição de subsídios a “áreas carenciadas de rede pública escolar” (Lei 9/79). E o que dizer da total ausência de preocupação com o descalabro a que chegou a Educação permanente em Portugal? Nada mais expressivo a esse respeito do que as palavras do presidente da Associação Portuguesa de Educação e Formação de Adultos (APEFA), Armando Loureiro, na Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, no dia 10 de fevereiro: “Portugal tem mais de meio milhão de cidadãos sem qualquer nível de escolaridade, sendo que uma percentagem considerável destes adultos se encontra na faixa etária dos 18 aos 65 anos. Em idade ativa, portanto. E o que fazemos? Que respostas apresentamos? Qual a estratégia integrada de formação-educação-emprego aplicada a estes milhares de cidadãos, tão portugueses quanto qualquer um de nós, mas analfabetos, que não sabem ler nem escrever, e que tiveram de encontrar mecanismos para ludibriar o desconhecimento da leitura e da escrita? Senhoras e senhores deputados, nesta dimensão da Alfabetização, vivemos momentos de completa e absoluta estagnação, por constrangimentos operacionais e vazio legal”. Será preciso ser mais explícito e frontal?
Manuel Matos
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