Página  >  Opinião  >  Carta a um menino que vai nascer

Carta a um menino que vai nascer

Chamar-se-á Guilherme. É o nosso primeiro neto e esta não é a carta que gostaríamos de lhe escrever. O que desejávamos era poder escrever uma mensagem de boas-vindas a um mundo luminoso, de futuro esperançoso, que não estivesse a ser governado ao ritmo e ao gosto do capital financeiro, cujo poder se encontra plasmado nas siglas que todos conhecemos e nos rostos (sempre os mesmos) que aparecem diariamente nas aberturas dos telejornais, nos debates televisivos e nas redações dos jornais.

Como gostaríamos, Guilherme, de te apresentar a um planeta onde fosse possível anunciar que, finalmente, a fome e a pobreza começaram a ser derrotadas; um planeta onde os responsáveis políticos e nós, os cidadãos, havíamos, finalmente, compreendido que não somos os donos dele, mas apenas transitórios habitantes que partilhamos com as plantas e os restantes animais, o mar, os rios, as montanhas, os desertos, as savanas e o futuro.
Gostaríamos de te escrever sobre sociedades onde a democracia seria mesmo o melhor de todos os sistemas, depois de ter sido entendida como o menor dos males quando o confronto se estabelece com a tirania das ditaduras; sobre como nos deixamos de contentar somente com a possibilidade de votar em eleições que deixaram de ser decididas pela força do marketing e da informação que, nos jornais, na rádio e na televisão, controla e decide qual é a realidade que devemos conhecer.
Quando nasceres, continuaremos a viver em sociedades onde somos todos iguais, ainda qua alguns sejam mais iguais do que outros. Ainda verás os refugiados a atravessarem o Mediterrâneo, fugindo das atrocidades e da fome para um lado do mundo que os acolhe de má vontade, depois daqueles que decidem terem andado a semear a guerra e o caos, sempre em nome da felicidade dos mesmos que acabaram por transformar em refugiados.
Aprenderás connosco que a mentira é desprezível, ainda que seja a mentira que, na maior parte das vezes, governa o mundo que te vai acolher. Aprenderás que os roubos são inaceitáveis, apesar de haver gente que tem o que tem porque há roubos que, não sendo ilegais, são imorais.
Vais aprender a falar e a compreender como as palavras constroem o mundo, mas vais aprender, igualmente, que as palavras, só por si, mesmo quando se escrevem, podem significar coisas diferentes conforme as circunstâncias.
Apesar de tudo o que está a acontecer, esperamos ansiosos por ti. Queremos-te connosco!
Não será o cinismo e a desfaçatez dos poderosos que nos irá impedir de te receber com toda a disponibilidade que tu, e todos os bebés do mundo, merecem da parte dos seus avós. Não escrevemos a carta que gostaríamos de te escrever, mas estamos aqui para assumir os compromissos que temos para contigo.
Também nós estamos prontos para te acolher, embalar, dar banho, mudar fraldas, cantar baixinho e encantar.
Descobriremos porque choras pelo modo como choras. Esperaremos pelo primeiro dente, a primeira de todas as esperas que a tua vida nos reservará. Serão os teus primeiros passos, as primeiras palavras, o primeiro desenho, o primeiro texto e todas as outras primeiras experiências que irão fazer de ti a pessoa que irás ser.
É por ti, mas também pelos meninos e pelas meninas como tu, que temos mais uma razão para vivermos e lutarmos por um mundo melhor. Um dia aprenderás que, ao contrário do que outros defendem, ninguém poderá ser completamente feliz enquanto, ao seu lado, houver quem não tenha as mesmas possibilidades de o ser.
Por isso, também por tua causa, temos mais um motivo para continuarmos empenhados na construção de uma Escola que deixe de discriminar os alunos pela sua origem social e cultural, étnica ou religiosa. Uma Escola onde a palavra inclusão não seja mais uma palavra vazia de uma ladainha que se invoca em discursos solenes. Uma Escola que seja um espaço culturalmente significativo e não um cemitério de ideias, uma espécie de monstro que a todos parece escapar e sobre o qual ninguém parece entender-se, enredados nas mil e uma armadilhas que não se resolvem e nos jogos de palavras sem sentido onde só ganha quem tem cartas escondidas na manga.
Neste mundo onde acontecem coisas horríveis e onde há gente que nos faz duvidar se é mesmo gente como nós, também irás conhecer pessoas que não precisam da promessa do céu, das condecorações dos presidentes ou das primeiras páginas dos jornais para fazerem o que deve e tem de ser feito.
Bem-vindo, Guilherme!

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo