Devíamos começar a ensinar os mais novos a escolherem com o maior cuidado os seus melhores amigos. E a não julgarem o poder de outrem pela sua visibilidade, antes pela forma como ele é cultivado.
O calcanhar de Aquiles de quantos deitam aos quatro ventos os méritos pretéritos de um povo, assentes em muitos dos nossos feitos históricos e do nosso poder como nação em outros tempos, e insistem em nos predestinar para feitos cuja razão se abriga numa mística, numa metafísica e numa espiritualidade que bastariam para explicar os êxitos futebolísticos, a bênção mariana ou os caprichos da mãe natureza, desavinda nas suas manifestações mais dolorosas, e insistem ainda em degolar a determinação em tomarmos nas mãos o nosso próprio destino, fazendo-nos capitular sob a invocação de valores como a honestidade, o trabalho e outros bons costumes, é um calcanhar que tem solas rotas e o cabedal dos argumentos muito apertado nos calos. Por ironia, argumentos que nos pisam na cegueira em que vamos pastando. A dolorosa realidade diz-nos que somos, como coletivo, incultos, anémicos de coragem, acríticos no sentido em que não nos munimos do conhecimento mais profundo dos problemas que nos assaltam nos dias de agora, intuitivos em demasia quando se trata de fazer juízos sobre questões complexas. O paradoxo reside no facto de insistirmos em prestar vassalagem aos eleitos de entre aquele coletivo, que, de facto, serão bem representativos pela falta de cultura, pela cobardia, pela crítica falaciosa, muito lestos a definir os seus inimigos figadais, mas sem que alguém lhes possa beliscar na honestidade, no trabalho ou nos bons costumes.
Será que estamos num beco de saída complicada? Tomemos como exemplo o meio literário do Portugal de hoje. Não interessa que chova no molhado, pois, no meio, todos sabem, de uma ou de outra forma, que o jogo está viciado. E porquê? Entre outros motivos, que se prendem com a falta de habilidade literária de muitos autores com sucesso, relativo, e com desamores editoriais que roçam a má-educação e a sobranceria, essencialmente por causa desse fantasma chamado dinheiro. Ele fala mais alto do que qualquer mérito, ele impõe-se nos constrangimentos que não poupam os atores mais dedicados e honestos, ele mede a qualidade dos autores em função do mediatismo e do volume de vendas. E é exatamente nesse universo que diz pugnar pela nossa língua materna, onde o poder tutela e dita leis, que falta uma faúlha de génio, de inventiva, de honestidade, de respeito pelo semelhante. Como poderia então ser diferente nos fóruns que dizem debater a educação, a literacia, o espírito cívico e a justiça social?
Um povo dócil e pouco instruído será sempre mais fácil de governar, ou, pelo menos, mais fácil de submeter à arbitrariedade e ao desmando do poder. Vivemos, hoje em dia, as formas mais elaboradas de censura, onde há expedientes que impendem nebulosos no exercício da subtração de uma liberdade autêntica. Não deixa de ser patético o espetáculo de uma sociedade mole e pouco instruída, onde, esses mesmos que deviam, por condição dos seus privilégios, lutar pelo respeito que merece o semelhante, são aqueles que mais defendem a paralisia cultural e o preconceito que recai sobre as vozes mais incómodas. Sem debate, sem confronto, sem uma abertura dos cenários privilegiados para a exposição das ideias e para o convívio dos argumentos, sem iluminar essa sombra dos lucros que o dinheiro proporciona, dos lucros pessoais que uma cultura de relações descartáveis facilita, será impossível falarmos de uma sociedade adulta na medida do respeito mútuo. Por tudo isto, e talvez por um pouco mais, é que devíamos começar a ensinar os mais novos a escolherem com o maior cuidado os seus melhores amigos. E a não julgarem o poder de outrem pela sua visibilidade, antes pela forma como ele é cultivado.
Luís Vendeirinho
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