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A aula

Os alunos mais jovens tinham sido aliciados para assistir a uma aula dos mais velhos, para que se entusiasmassem tomando-os como exemplo. Tiveram de fazer uma viagem de 300 quilómetros, porque lhes tinha sido afiançado – por todos os meios de comunicação (desde a imprensa escrita, à audiovisual, sem deixar de passar por todos os blogues e afins) e também por todos os órgãos de gestão da escola, pelo diretor de turma e pelos docentes acompanhantes da visita de estudo – que aquela turma era o ex-líbris da nação, o orgulho de Portugal, e que justificava bem quer o dinheiro que tinham angariado com as festas e as vendas, quer o que era suportado pelo Programa Operacional Potencial Humano.
Coisa séria, portanto, a merecer bem o esforço: paragens nas áreas de serviço, com tudo ao preço das ajudas de custo de um deputado ou de um secretário de Estado (e não dos pais desempregados de um aluno de um curso profissional), mas onde os WC ainda são gratuitos; farnéis à antiga portuguesa, de rojões no pão, pastéis de bacalhau e boroa de Avintes, misturados com hambúrgueres, cachorros ou bolos de cenoura da Bimby, nesta verdadeira globalização integrada pela necessidade; “ó professor, estou enjoado”, “ó professor, dói-me a barriga”... Enfim, lá chegámos.
A coisa parecia mesmo a sério, de gente grande e à grande. O edifício era colossal. Nada de telhados em ziguezague, com placas de fibrocimento partidas e redes de amianto com perspetivas cancerígenas a espreitarem o futuro de quem vive quase todo o seu tempo por baixo delas. Janelas rasgadas, airosas, parecendo bem calafetadas, por onde o frio não sopraria durante o inverno.
Todos tiveram que deixar as mochilas à entrada, nos cacifos, porque só iam assistir. Os telemóveis também – prática, aliás, usada em muitas escolas. Silêncio absoluto. Não era permitido aos espectadores um pio, porque ali havia mesmo polícia e corria-se o risco de coima ou de prisão. Todos muito direitinhos, depois de ouvirem as regras de comportamento, sentaram-se nos lugares que lhes foram indicados. E observaram a aula, que já tinha começado.
As carteiras estavam dispostas em semicírculo. A professora estava sentada num ponto bastante alto, numa espécie de terceiro andar, numa secretária em cima de um estrado, ladeada por dois alunos – um dos quais lia um trabalho (coitado!) que ninguém parecia ouvir; talvez fosse uma espécie de ata da aula anterior.
Para espanto dos jovens alunos, que observavam e pretendiam aprender comportamentos na sala de aula, a maior parte dos membros daquela turma não estava presente. Só as pessoas dos dois pequenos grupos à esquerda da professora se encontravam sentados, um pouco atentos à ata e a tudo o que se passou depois, durante a hora em que permaneceram lá dentro. Os outros iam entrando e saindo como se nada se passasse naquele espaço.
Sobretudo do lado direito da professora, entravam umas senhoras com carteiras de marca (diziam as jovens alunas, mas podiam ser made in China), muito finas e com cabelos muito arranjados; paravam numa ou noutra escrivaninha de uma amiga, e ficavam ali que tempos a falar com as colegas, como se estivessem em plena rua a falar sabe-se lá de quê. Claro que não se ouvia do que falavam, claro que até podia tratar-se de centros de interesse, como em Decroly, sabe-se que há muitas pedagogias…
O barulho era tanto na enorme sala dos “melhores alunos”, que o burburinho se foi espalhando cada vez mais e até já os pequenos, perante o “exemplo” dos maiores, falavam com algum à vontade, sem que ninguém os admoestasse. Os cavalheiros, na sua maior parte de fatões cinzentões, sobretudo do mesmo lado das senhoras das carteironas, também conversavam, ora em pé, ora sentados. Até dava a impressão que os verdadeiros assuntos da aula eram resolvidos fora dali, talvez em centros de explicações, como agora é moda. Mas é verdade que os elementos do género masculino se concentravam mais nos computadores.
Os jovens alunos protestavam “porque enquanto os outros estão a falar, eles não estão com atenção e estão no mail”; “olhe aqui, professor, este à nossa frente até está no facebook”… E eu: “Mas podem estar a trabalhar…”. “Não quando os outros estão a falar para eles”. Quando foram discutir a agenda, que versava a questão do encerramento das estações dos CTT, é que foi pior.
Só os tais que estavam sentados à esquerda da professora pareciam preocupados com postos de trabalho e com a falta de acesso das populações mais antigas à correspondência com os seus filhos e os seus netos emigrantes. Bateram-se quanto puderam para que houvesse consciência de que em Portugal há gente com necessidade de continuar a viver. À direita da professora, para além de uns jovens destacados para “empatar” o pessoal, sem praticamente saberem o que é Portugal para além dos corredores das juventudes partidárias, já não havia quase ninguém.
Tão mau, tão fraco, tão nauseabundo, que viemos embora. Mas se a aula foi, afinal, péssima, a lição foi das melhores – os alunos ficaram a saber, pelo menos, como é preciso mudar a Assembleia da República.
Depois fomos ao Museu dos Transportes e Comunicações prestar a devida homenagem a todos os que, ao longo dos séculos, tanto engrandeceram os Correios e Telecomunicações de Portugal. Ao povo português, cada vez menos representado em S. Bento. A Portugal, país que é nosso – coisa de que muitos deputados se vão esquecendo.

José Rafael Tormenta


  
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