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Educar para a dádiva: uma proposta socialmente nada ingénua

A fragilidade do laço social é hoje uma evidência. Estamos perante a necessidade de refazer as razões de vida em comum a partir de um paradigma intrinsecamente relacional e assente num olhar esperançoso sobre a natureza humana, favorecendo a emergência de uma ação coletiva alternativa.

Sem sombra de dúvida que a forma como se concebe a génese do vínculo social determina a natureza e a qualidade das relações que tecem a convivialidade no seio de uma comunidade, revelando esses laços, em momentos socialmente críticos como os que enfrentamos, toda a sua fragilidade em fenómenos de individualismo, ‘guetização’, exclusão ou menosprezo, ou, então, toda a sua espessura humana através de gestos de solidariedade e de generosidade.
Perante a ameaça de uma eminente rutura social, a Educação pode ser portadora de uma palavra de esperança a este respeito? Pensamos que uma intervenção socioeducativa alternativa consiste em promover novas dinâmicas de aprendizagem social mediadas pela “dádiva”, favorecendo um renovado paradigma relacional com um impacto sociocultural diferenciador.
Historicamente, o Estado moderno emergiu de uma matriz antropológica fundada sobre o egoísmo racional do sujeito e motivada pelo medo do ‘outro’, forjando um modelo societário conflitual em que se baseiam ainda hoje as doutrinas contratualistas que justificam o pacto social. E se é possível afirmar que a modernidade se edificou confiando a regulação deste pessimismo antropológico originário às duas grandes lógicas sistémicas que lhe deram corpo (do Mercado e do Estado), em termos de expectativas de convivialidade acabou por enclausurar o cidadão numa polaridade esquizofrénica: a de esperar que ele seja, ao mesmo tempo, “radicalmente egoísta e perfeitamente altruísta”.
Se, como se constata, a fragilidade do laço social é hoje uma evidência, estamos perante a necessidade de refazer as razões de vida em comum a partir de um paradigma socioantropológico de caráter intrinsecamente relacional e assente num olhar esperançoso sobre a natureza humana. Tal paradigma é assumido por aqueles que preconizam a instauração de uma dinâmica de “dádiva” nas várias esferas da sociabilidade, favorecendo a emergência de uma ação coletiva alternativa.
Maurice Godelier (O Enigma da Dádiva) concretiza o apelo: “face à amplitude dos problemas sociais e à incapacidade do Mercado e do Estado em os resolver, a dádiva está em vias de voltar a ser uma condição objetiva, socialmente necessária, da reprodução da sociedade”.
Os sinais e os gestos de dádiva têm-se multiplicado visivelmente pelas mais variadas esferas e lugares da vida (inter)pessoal e social: nos atos de generosidade entre família ou entre amigos, na doação de sangue a desconhecidos ou no acolhimento a estrangeiros, no apoio a grupos de entreajuda ou através de projetos de voluntariado...
Podendo ser caracterizada como “qualquer prestação de bens ou serviços efetuada sem garantia de retorno, tendo em vista a criação, manutenção ou regeneração do vínculo social” (Alain Caillé, Antropologia da Dádiva), a dádiva está revestida de um paradoxo ético: constituindo um verdadeiro bem, o seu valor não é primeiramente económico, mas antes social e moral, porque o valor não se centra no objeto trocado, mas na troca desinteressada e gratuita – assimétrica, portanto – que ela instaura.
No momento do gesto, a dádiva implanta no coração do doador uma expectativa, esperança ou até exigência de resposta (não utilitarista), de um reconhecimento do ato simbólico encetado e, nessa medida, abre a relação ao imprevisto, ao excesso, à desmesura do receber...
Ao contrário de uma relação económica em que cada troca é completa, cada relação é pontual e cada dívida deve ser definitivamente liquidada, na relação de dádiva estabelece-se uma “dívida mútua positiva”, na expressão de Jacques Godbout.
Trata-se, de facto, de uma dívida que é permanente e recíproca, que não tem um sentido económico nem tampouco diz simplesmente respeito “às coisas” que circulam na relação, mas que atua, no interior dessa mesma relação, sobre o laço que se estabelece entre as pessoas.
O Estado e o Mercado, como lugares da sociabilidade secundária, têm-se revelado como espaços opostos ao da dádiva, onde o apagamento da singularidade constitui a fonte de legitimação necessária dos sistemas de ação baseados na regra da utilidade, da eficácia funcional ou da obrigação pública.
Embora os valores altruístas não se encontrem arredados das instituições públicas, a noção de dádiva não se confina a uma relação meio-fins, própria da natureza estatal das relações baseadas na racionalidade instrumental. Igualmente oposta à lógica do Mercado, a dádiva – enquanto aceitação racional do risco de que um gesto pode não ter retorno – poderá trazer luz para dentro das aporias do racionalismo individualista sobre o qual se funda e funciona o Mercado.
A ordem de grandeza dos problemas com que nos deparamos como sociedade acabou por moldar “um laço social e uma cultura de urgência” nas soluções preconizadas. E porque perpassadas pela desconfiança na humanidade do homem que lhe deu origem e à espera dos protagonistas de sempre (Mercado e Estado), mantêm-se reféns de lógicas de convivialidade esgotadas, empurrando muitos dos nossos concidadãos para os limiares de uma sociabilidade (in)suportável.
Urge reconstruir, por via de uma “educação para a dádiva”, laços sociais alternativos, gizados criativamente na interseção entre a Pedagogia Social como ciência promotora da aprendizagem social e a Educação Social enquanto praxiologia restauradora da condição humana.

José Luís Gonçalves


  
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