Numa obra de 1995, Carl Sagan refere a resistência do pensamento mitológico como um dos grandes obstáculos à evolução do pensamento e compreensão do mundo pela nossa espécie. A obra é «Um Mundo Infestado de Demónios».
Desde as primeiras civilizações históricas conhecidas (no que respeita ao Ocidente, a Mesopotâmia ou o Egito), está sempre presente esse pensamento. Pode-se pensar de forma incorreta, pensar de forma não racional, de maneira mitológica. O mito é uma história que simplifica a realidade, é fácil de fixar e transmitir, atribui capacidades extraordinárias a elementos naturais. Se dissermos que o vento é o ar em movimento, damos uma explicação racional (embora simples); se dissermos que uma entidade (Eolo, por exemplo) sopra e produz o vento, damos uma explicação mitológica sobre o vento. São explicações falsas, muitas vezes sacralizadas porque convêm a quem pode. O discurso político e a publicidade (irmãos gémeos) são essencialmente mitologia. Pensar que seguir um líder nos levará a uma suposta ‘redenção’ é pensar de forma mitológica, tanto mais quanto o líder tiver poder incontestado. O líder é um ser humano; é tão ‘bio-psico-socio-cultural’ como qualquer outro indivíduo, mas aparece endeusado, capaz de ações extraordinárias. Não raras vezes, do Egito Antigo a Roma ou à Alemanha nazi, a mitologia política esteve ligada ao aparecimento de rituais secretos, como esteve ligada à adesão de inúmeros indivíduos de ciência e cultura. Desde Martin Heidegger, que viu em Hitler um deus, a tantos médicos que venderam os seus conhecimentos e ações ao regime nazi (Mengele foi apenas um deles), passando por Wernher von Braun – que desenvolveu as bombas voadoras V1 e V2, e mais tarde, nos EUA, o projeto espacial da NASA – ou Werner Heisenberg – físico que formulou o Princípio da Incerteza para a explicação da Natureza e que aderiu a um princípio de certeza absoluta e permaneceu em Berlim de 1942 a 1945, dirigindo o Instituto Max Planck –, os exemplos parecem não ter fim.
Docentes têm luta difícil. No final do século XX, “63% dos americanos não sabem que o último dinossauro morreu antes do aparecimento do homem; (...) cerca de metade não sabe que a Terra gira em volta do Sol.” [«Um Mundo Infestado de Demónios». Gradiva, 1997]. Este tipo de pensamento resiste, portanto. Basta abrir alguns jornais diários e ler quantos anúncios existem sobre pessoas que dizem curar todas as doenças, provocar ações noutros indivíduos à distância, fazer magia (desde que lhes paguem). O mágico, contrariamente ao religioso, não pede: ‘manda’ na Natureza com palavras ou gestos. É mais fácil caminhar por aí do que estudar muitos anos e viver declarando que as descobertas científicas são provisórias. O dogma – a verdade absoluta – pode ser cruel, mas consola. Talvez por isso esse pensamento resista, pela sua facilidade e porque apela à obediência: é simples dizer “cumpri ordens”. O discurso publicitário, que visa provocar comportamentos de consumo, é irmão do discurso político. A publicidade não dialoga: impõe-se em toda a cadeia de comunicação. Engana descaradamente: automóveis não poluentes, colas, sopas, dietas, tudo verdades absolutas. Estes são os discursos de poder da atualidade: todos os que, pela sua natureza, encobrem ou distorcem a realidade. A Comissão Warren – constituída para esclarecer o assassinato de Kennedy – chegou a colocar a hipótese de uma bala ter entrado pela cabeça do presidente na parte posterior, saindo pela parte frontal superior; desceu e avançou para o assento da frente do carro presidencial, atingindo o ombro esquerdo do governador Connaly; a mesma bala teria saído pelo peito de Connaly, entrado numa mão pela parte superior, saindo pela parte inferior, elevou-se e alojou-se na coxa esquerda! [Fernando Blázquez: «História do Mundo Sem as Partes Chatas». Academia do Livro, 2010]. Neste mundo, os docentes têm de trabalhar numa luta difícil, mas útil.
Carlos Mota
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