Sem abdicar de nenhuma das suas referências no que respeita aos sabores/saberes relacionados com o mundo psíquico, Teolinda Gersão é também sensível aos valores da imanência e os equilíbrios que consegue criar entre as duas instâncias nunca a fazem perder de vista a base concreta inspiradora. Dissociar Natália Correia da aventura do Botequim seria crime de lesa propriedade intelectual e isso mesmo foi o que motivou Fernando Dacosta, não só a contar a história do estabelecimento como a contribuir para a biografia da renomada autora, tendo por centro geométrico o notável ponto de encontro.
REALISMO SEM EQUIVALENTE. No mais recente romance de Teolinda Gersão, «Passagens», a propósito do falecimento de Ana, não perdem preponderância os elementos de caráter psicologístico que permeiam a obra desta escritora – o sonho, o maravilhoso, a transcendência com que cada ser humano é capaz de se redimir em ocasiões extraordinárias. Numa segunda parte do livro (Noite) e nalgumas partes da primeira (Ponto de Encontro) a personagem Ana ganha “vida” durante o seu próprio velório e na longa noite em que não veio ninguém desdobra-se em duas vozes personalizadas (Ana 1 e Ana 2) que discorrem longamente sobre o passado e as vicissitudes familiares, convocando os fantasmas mais impertinentes para o ajuste de contas final. Todavia, no seu todo, o romance está ancorado numa sólida realidade social e daí poder afirmar-se sem rebuço tratar-se de uma obra realista de grande qualidade (e de grande maturidade) para ombrear com a qual não vislumbro equivalente no nosso atual panorama literário. No último bloco (Cerimónia) em registo dialógico intenso, o rastreio existencial global ocupa as conversas dos presentes. Assiste-se a uma discussão em que o discurso erudito alterna com o trivial (a comunicabilidade confessional da empregada Conceição), desde as origens cósmicas a questões como a maternidade, a reprodução, o papel da mulher no mundo dos homens, a degradação física da pessoa humana como fatalidade biológica inapelável, a crispação ôntica e a guerra dos sexos. Fica assim fechado o ciclo de uma família moderna vulnerada pela onda de choque civilizacional que depois de a dispersar a reúne. Teolinda, sem abdicar de nenhuma das suas referências no que respeita aos sabores/saberes relacionados com o mundo psíquico, é também sensível aos valores da imanência e neste seu livro os equilíbrios que consegue criar entre as duas instâncias nunca a fazem perder de vista a base concreta inspiradora. Certamente mais nuns romances do que noutros, o conhecimento acumulado ao longo de decénios a ensinar literatura fará sentir a sua força; em todo o caso, se um projeto literário que não perfilha a “citação” nem a “intertextualidade” ou desobedece à tutela “canónica” e se cumpre sem que jamais seja depreciado o horizonte humanista como ponto de partida e meta de chegada, é de um trajeto e de uma obra verdadeiramente singulares aquilo de que estamos a falar. «Passagens» (Sextante Editora) constitui uma análise implacável e soberbamente escrita da nossa circunstância.
O BOTEQUIM DE NATÁLIA. Fernando Dacosta, autor de «O Botequim da Liberdade», quis respeitar as instruções de Natália Correia para que o famoso Botequim da Graça nunca tivesse o título que leva esta nota, caso algum dia fosse publicada em livro a sua história. Não me cabendo respeitar a vontade de Natália, que de resto mal me conhecia, aqui lhe deixo a vénia que, aliás, a edição generosamente lhe outorga de outra maneira, ao publicar-lhe na capa a foto em grande plano, com a icónica boquilha entre os dedos e o título que desejou. Seja como for dissociar Natália da aventura do Botequim seria crime de lesa propriedade intelectual e isso mesmo foi o que motivou Fernando Dacosta, não só a contar a história do estabelecimento como a contribuir, com largo aparato de informações avulsas, mas de incontestável precisão, para a biografia da renomada autora de «Não Percas a Rosa», tendo por centro geométrico do seu discurso, naturalmente, o notável ponto de encontro e as individualidades que por lá passaram e lhe conferiram notoriedade. Neste livro estão bem referenciados o lugar onde as coisas aconteceram, pelo menos na sua génese, e o respetivo tempo histórico – a Revolução de Abril nos seus aspetos mais escaldantes, mas sobretudo a correção que lhe foi introduzida pelo ‘25 de Novembro’, movimento congeminado no Botequim. Basta observar o leque de habitués da “saleta de músicas e cetins”: Costa Gomes, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Jorge Sampaio, Mário Soares, Maria de Lurdes Pintasilgo, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Alves, entre outros de que se dá notícia na contracapa de «O Botequim da Liberdade». Fernando Dacosta, então jornalista de O Jornal e depois da primeira fase do Público, estava extremamente bem preparado para ser ele a incumbir-se de um texto desta índole, a que só mais tarde lançou mãos, num estilo em que estão presentes o jornalista-historiador e o escritor, ambos de grande qualidade. O leitor deliciar-se-á com as peripécias que envolvem a protagonista e achará algumas pistas esclarecedoras do que foram esses tempos de cólera e ansiedade vividos no “iate de luxo onde se navegava delirantemente”. Publicado inicialmente em 2013, «O Botequim da Liberdade» (Casa das Letras) fez uma carreira de sucesso, estando a circular em 5ª edição.
Júlio Conrado
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