É sabido que o elefante, quando se afasta da manada, ainda com energia suficiente para se considerar ‘orgulhosamente só’, é para terminar os dias da sua vida.
Antecipando algumas máximas latinas, seja tolerado começar este texto com um provérbio quimbundo, que já agora também se aproveita para homenagear os obreiros da independência de Angola, declarada, há 40 anos, a 11 de novembro: quem apanha bagre não remexe a lama. Mas o que vem a propósito é o discurso pós-eleitoral do nosso Presidente da República, em fim de carreira, envolto nas teias político-partidárias que nos últimos tempos enredaram o país leitor e/ou ouvinte dos órgãos de comunicação social, respeitando ou não os seus escritos e vozes, conforme o crédito que lhe mereceram. Bem entendido, este não é o país todo, a ter em conta a elevada percentagem de portugueses que não quiseram votar, por razões certamente ponderáveis. Mas dirigido a todos os portugueses como uma prédica institucional – magister dixit –, esse discurso haveria logo de suscitar concordâncias e discordâncias, como se viu de imediato. Umas, por meras ressonâncias partidárias; outras, por assumidas dissensões ideológicas. Por vocação ou cultura, a Cavaco Silva não ocorreu aquietar os espíritos citando, por exemplo, como epígrafe, o grande poeta da antiga Roma, Horácio: Carpe diem, isto é, “aproveita o dia presente porque a vida é curta”, mas omitindo, face às presentes circunstâncias socioeconómicas e em tempo de formular bons auspícios, “e sê o menos confiante possível no futuro”... Na mesma onda, outro provérbio quimbundo se lhe aduziria, quase eclesiástico: comamos o nosso mel, não nos importemos com o que a abelha faz ou por onde passa. Pois já Eclesiastes opinava sobre a felicidade no mundo: “Compreendi bem que o bom para o homem está em comer, beber, gozar o bem-estar em todo o trabalho que suporta debaixo do sol de todos os dias da vida que Deus lhe dá. Esta é a sua sorte.” Obviamente, os críticos ao magistério de Cavaco Silva não se deixariam ficar com a hipotética escolha da primeira epígrafe sem lhe contrapor o pensamento de Virgilio, outro grande poeta da antiga Roma: Carpent tua poma nepotes / “os vindouros colhem os teus frutos”, isto é, o homem não deve pensar apenas em si e no presente, mas também nos descendentes e, por isso, plantar para que estes possam gozar do fruto do seu trabalho.
Imagética selvagina. Terá sido este o pensamento de uns tantos recém-nomeados ‘plantadores’ da Assembleia da República, em que, todavia, já se pode distinguir quem vai plantar e quem vai colher, remetendo a uma glosada ‘tradição’ – na verdade recebida tanto da Democracia de Atenas como da República de Roma, segundo as quais eram os ricos (vulgo patrícios) quem colhia e os pobres (plebeus) quem trabalhava. Certamente o ainda presidente da nossa República não tinha dúvidas a respeito das diferenças (vulgo classes) dos ‘plantadores’. Quando os convocava para um ‘consenso’ patriótico, ele, não sendo conhecido como latinista, teria aprendido da ‘tradição’, ou melhor, da prática vigente, que Homo homini lupus. Para isso, bastar-lhe-ia ter lido um sociólogo reputado e ‘insuspeito’ como Raymond Aron em «Democracia e Totalitarismo» (Presença, 1966), do qual extrapolamos: “Todos os regimes são essencialmente definidos pela luta pelo poder, pelo facto de um pequeno número de homens exercer o poder. O que é a política? A luta pelo poder e as vantagens que este dá. (...) Presentemente, a política reduz-se de facto a uma batalha entre os homens pelo poder e pelos lucros, e a ciência da política torna-se, de acordo com a expressão de um sociólogo americano: quem recebe? o quê? quando? como? (...) Chegamos ao que hoje se dá o nome de filosofia maquiavélica, última etapa da dissolução da filosofia clássica ou da concepção moral da política.” Noutro passo, Aron, falando do caráter psicossocial dos detentores do poder, compara-os com os leões e as raposas, uns manifestando-se por meios de força, outras pela astúcia, manifestada na palavra e na especulação [dos polvos já tinha falado o padre António Vieira...]. Tratando-se de uma imagética selvagina, caberia hoje referir a ação sonorosa de papagaios e catatuas, como protagonistas do poder da comunicação de massas (já chamado Quarto Poder), pela influência que também exercem na “dissolução da filosofia clássica e na concepção moral da política”. Enfim, como a História não se repete – há quem diga –, não nos seria tolerado fazer prognósticos nem diagnósticos quanto ao futuro. Mas leitor que somos dos adágios de vários povos, tomados como frutos da sua velha experiência na cidade e na selva, não hesitamos em concluir com a escolha de mais um provérbio quimbundo (ainda pensando em Angola): pousa as mãos num elefante, são muitos os amigos; vai-se embora o elefante, os amigos se dispersam. É sabido que o elefante, quando se afasta da manada, ainda com energia suficiente para se considerar ‘orgulhosamente só’, é para terminar os dias da sua vida.
Leonel Cosme
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