Saudação ao 37º Congresso do MEM
Este é um momento histórico, cuja importância também reside no facto de nos ajudar a compreender que – parafraseando a canção de José Mário Branco – viemos de longe, de muito longe, e o quanto andamos para aqui chegar. Um momento que só existe porque o passado nos impele – e recorro agora à canção dos Trovante – a dobrar os nossos cabos da Roca a S. Vicente, em boa esperança, vagueando com as ondas que nos fazem sentir saudades do futuro. Congratulemo-nos pois, neste congresso, com os nossos 50 anos, não só porque chegamos até aqui, mas, sobretudo, porque estamos aqui, neste lugar onde temos o privilégio de, olhando à volta, encontrar uma, duas, três, muitas pessoas que constituem referências incontornáveis das nossas vidas profissionais. Gente que nos fez e faz pensar; que nos ouviu e ouve, interpelou e interpela, não fazendo por nós o que só cada um de nós pode fazer por si. Gente que, apesar da ajuda que nos deram e continuam a dar, sobretudo nos orientam para encontrarmos os recursos que fazem de nós o que somos hoje, como professores e educadores. Olhemos à volta e vejamos, também, quantos nesta sala podem dizer o mesmo acerca de cada um de nós. Somos muitos! Somos alguém! Cinquenta anos depois da fundação esta é uma das dimensões mais decisivas do património que, como Movimento, temos vindo a construir.
Propósito Renovado. Não sendo este o lugar ou o momento para aprofundar uma reflexão sobre o impacto do compromisso através do qual nos assumimos como movimento de autoformação cooperada, é, certamente, o lugar e o momento de afirmar a importância de um tal compromisso nas nossas vidas profissionais. Um compromisso que nos obriga a olhar para as nossas raízes, e de modo particular para Célestin Freinet, quando encontra na “mobilização dos professores para se organizarem em torno das suas práticas educativas e da produção dos meios de trabalho necessários à gestão do currículo na escola regular” uma oportunidade para dar “um salto irreversível na construção da autonomia profissional dos docentes e da sua responsabilização social e política”, como nos lembra Sérgio Niza [posfácio de «Freinet: atualidade pedagógica de uma obra», de António Nunes]. Por isso, e como também recorda Sérgio Niza, apesar de já não sermos Freinet, António Sérgio, Rui Grácio ou, entre vários outros, Maria Amália Borges, continuamos a ser um movimento que, independentemente da mobilização de outros autores e outros discursos, das mudanças concetuais subsequentes, do desenvolvimento e aperfeiçoamento de outras propostas e dispositivos pedagógicos, continuamos a ser – dizia – um movimento subordinado a um objetivo maior: a construção de projetos de educação congruentes com os fundamentos democráticos que têm vindo a animar a nossa reflexão e ação sobre as finalidades da Escola e da organização e gestão do trabalho curricular e pedagógico que nela tem lugar. Se em 1965 era este o propósito que animava todos os que constituíram o Grupo de Trabalho de Promoção Pedagógica, no âmbito do segundo curso de aperfeiçoamento profissional de professores, orientado por Rui Grácio no Sindicato Nacional de Professores, hoje, 50 anos depois, esse continua a ser o propósito que nos mobiliza e que anima todas e todos os que participam neste congresso. É verdade que os tempos mudaram. Em 1965, realizar um trabalho de formação subordinado à divulgação das técnicas Freinet era um ato politicamente subversivo e pressupunha que quem buscava desenvolver práticas pedagógicas alternativas às que então vigoravam tinha de enfrentar o conservadorismo político e pedagógico, num país fechado sobre si mesmo, com índices de analfabetismo e manifestações de subdesenvolvimento que, apesar de tudo, têm pouco em comum com o Portugal em que vivemos.
Os tempos mudaram. Hoje, nenhum de nós arrisca ser exonerado da carreira profissional por promover um Conselho de Cooperação Educativa ou por utilizar Planos Individuais de Trabalho – ainda que, sabemos bem, em alguns agrupamentos escolares seja preciso afirmar com coragem o direito de o fazer. Hoje, os exames não têm o peso do passado, mas tivemos de aprender a viver a relação tempestuosa com os rankings, com os programas escolares enciclopédicos em vigor e com as metas curriculares impostas, que no conjunto contribuem para atomizar o trabalho intelectual a desenvolver numa sala de aula, prescrevendo de forma prévia, minuciosa e exterior aos atores que aí intervêm o que eles se encontram obrigados a realizar. Hoje temos de aprender a responder, também, a todas as iniciativas que, mais do que o empoderamento institucional, visam assegurar o controlo de uma atividade docente que se tem vindo a proletarizar em escolas onde as preocupações pedagógicas tendem a subordinar-se às respostas remediativas e compensatórias das crianças que manifestem alegadas dificuldades de aprendizagem; dificuldades que, por isso, deixam de ser objeto de qualquer tipo de interpelação e de problematização. O que fazer? Ou melhor, como tantas vezes nos pergunta o Sérgio, “o que fazer com aquilo que nos deixam ser?” Apetece-me dizer, mesmo que pareça paradoxal, que uma escola onde se despreza a inteligência dos alunos e se impede o florescer da sua humanidade é uma escola que demonstra, só por si, a importância da nossa reflexão sobre os projetos de educação escolar e as alternativas que temos vindo a construir em conjunto. Uma escola em que o rigor que se proclama é o rigor da geometria dos cemitérios onde enterramos os poetas, os físicos, os filósofos, os pintores e os matemáticos, é uma escola que necessita que o discurso sobre o rigor e a exigência se transforme numa denúncia do trabalho que se limita a promover a caricatura do conhecimento, que deste modo é sonegado às crianças e aos jovens. Basta olhar à nossa volta para constatar o deplorável espetáculo da instrumentalização dos resultados dos exames ou a aberração de uma prova de avaliação de conhecimentos e capacidades, cuja indigência cultural, intelectual e pedagógica só encontra paralelo nas inúteis provas de avaliação quotidiana a que são sujeitos tantos alunos neste país.
Continuar sonhos e projetos. Torna-se claro que a nossa presença aqui, e o que ela representa 50 anos depois, não só faz sentido como é necessária, quer como expressão do seu caráter cívico, quer como expressão de uma outra possibilidade de pensar a Escola e os projetos de educação que nela se desenvolvem. Para além de todas as motivações que nos animam a estar aqui, temos de compreender que, 50 anos depois, voltamos a ser necessários para denunciar como controverso, ou mesmo sem credibilidade, o discurso de um [anterior] ministro que afirma que é a memorização que garante a compreensão ou que os procedimentos têm de ser primeiro rotinizados, para posteriormente poderem ser entendidos quanto às opções que os justificam e aos fundamentos que os sustentam. Um discurso insustentável, independentemente dos que o aceitam, porque, além dos contributos que a investigação foi construindo, houve gente que, como nós, contribuiu para testemunhar outras possibilidades de construção das aprendizagens. Fizemo-lo através do trabalho que desenvolvemos nas nossas salas de aula e das reflexões que fomos partilhando a partir de tal ação, num processo que nos obrigou a interpelar e a ser interpelados, a arriscar e a apoiar as atividades dos que têm estado connosco nos Sábados Pedagógicos, nos Grupos Cooperativos, nas salas dos nossos congressos – atividades em que nos expomos, como pessoas e como profissionais, e em que desafiamos e apoiamos aqueles que partilham os mesmos projetos e os mesmos sonhos. Desafio-vos a partilharem projetos e sonhos, sabendo que nos próximos 50 anos – e volto a parafrasear José Mário Branco – teremos de nos continuar a encontrar com tudo o que temos para nos dar.
Ariana Cosme
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