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O meu mestre (re)visitado ou memórias de outra escola

1. As histórias individuais são contadas através de referências – processos, acontecimentos e pessoas – que cada um considera importantes no seu percurso de vida. Para quem viveu a escola primária do Estado Novo, o/a professor/a é, sem dúvida, uma dessas referências. É um outro significativo; uma memória presente que nos transporta à escola desse tempo. Embora o ambiente e as interações pedagógicas nessa escola raramente deixassem boas memórias, porque nos comprimiam entre o receituário ideológico, educativo e pedagógico do Estado Novo e a vida por nós desejada, o professor nunca ficou perdido na nossa memória. Passada a escola, e ao longo de muitos anos, a propósito de muitas circunstâncias da vida, revisitamos, com uma mistura de boas e más memórias, o tempo da escola e dos professores.
É essa memória que hoje me faz (re)visitar o meu velho professor, agora com 92 lúcidos anos, e escrever este texto. Numa das minhas primeiras visitas, o professor Augusto presenteou-me com a minha prova escrita do exame da 3ª classe. Tinham passado cerca de quatro décadas! Para mim, foi uma honrosa evidência das memórias do meu professor sobre a sua escola e sobre os seus alunos. Um olhar sobre o conteúdo e a estrutura da prova, transportou-me para aquele longínquo dia e fez-me relembrar o contexto real em que aquela prova foi realizada. Com um sorriso, o professor comentou: “Carlos, aquilo é que eram tempos. Nós ensinávamos e vocês aprendiam como hoje já não se ensina nem se aprende.”
Não falámos do contexto social e político daquela escolarização, nem relembrámos como se ensinava e como se aprendia; não comparámos a escola daquele tempo com a escola de hoje. A sua atitude revelava que foi, em toda a plenitude e com muito orgulho, um bom professor daquele tempo, com aquelas condições – políticas, sociais, pedagógicas e educativas – que ele, provavelmente, não admitia poderem ser outras. E, confirmo eu, naquelas condições, foi um bom professor.

2. A par de alguns outros atores sociais, como o padre, o regedor e o cabo da GNR, naqueles pequenos universos rurais, fechados e socialmente controlados, os professores tinham o protagonismo e a centralidade social caraterísticos dessas comunidades. Eram autoridades com poderes e funções ideologicamente comandadas que cercavam as socializações dentro de exíguos espaços que não admitiam transgressões. Mas o prestígio dos professores decorria, sobretudo, da sua autoridade enquanto fonte única de conhecimentos, socialmente valorizados, e do poder de facultar e reconhecer parte desses conhecimentos aos seus alunos.
Os professores estavam sujeitos a pressões e rígidas exigências ideológicas e curriculares que, naturalmente, condicionavam tentativas relevantes de inovação educativa. Eram as condições para a sua sobrevivência profissional. Ao professor cabia ensinar a ler, escrever e contar, competências temperadas com os saberes da história e da geografia que exaltassem mitos e glórias nos tempos e nos espaços do império. Os valores a promover situavam-se em torno de Deus, da Pátria e da Família, trilogia entendida no tempo e nas condições da época e do país.
Os meios e as estratégias pedagógicas adequadas ao desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças eram desconhecidas ou pouco interessavam em função dos fins a atingir e da manutenção do prestígio do professor. Este era regulado pelas expetativas da tutela, das famílias e pelo número de alunos que terminavam a 4ª Classe com sucesso. O diploma era uma meta muito desejada pelas famílias, e para muitas crianças ainda inacessível. Os processos de ensino-aprendizagem não eram questionados; eram os conhecidos, com a eficácia que os adultos que foram à escola experienciaram.

3. Hoje, como sempre, pretende-se uma educação de qualidade, com professores competentes, dedicados e prestigiados, e que deixem boas memórias nos seus alunos. Eles não têm a mesma centralidade e poder dos professores da minha velha escola. Os contextos e os tempos são pouco comparáveis.
Em democracia, o imperativo de educar para a igualdade em contextos globalizados, de massas e de grande diversidade, tornam a função docente mais complexa e exigente. É, em certa medida, uma função – como outras – mais diluída na complexidade, porque ocorre em contextos democráticos e, por isso, mais colaborativos, interdependentes e mutáveis. Mas permanece, sempre, como condição de qualidade, o reconhecimento e o prestígio profissional dos professores.
Parece, no entanto, que a tutela se tem escondido no meio da complexidade da sociedade democrática para massificar a função docente e faltar-lhe com condições essenciais para a promoção do seu reconhecimento e do seu prestígio.

Carlos Cardoso


  
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