O que considerávamos ser uma leitura pouco cuidada das abordagens ao construtivismo é mais uma leitura preconceituosa do que simples ignorância e desleixo concetual. A desilusão pode ser o legado mais valioso do consulado de Crato, caso ajude a compreender que os preconceitos ‘cratinos’ não se adequam às exigências e aos desafios das escolas.
Fim! Nuno Crato deixou de ser ministro da Educação, o que justifica a escrita deste texto como exercício contra o esquecimento, para que nos confrontemos com as consequências da ação de um homem que baseou a sua intervenção, enquanto ministro, num conjunto de crenças que se foram afirmando através de leituras negativas produzidas sobre pessoas e situações e em generalizações abusivas e penalizadoras, que, por sua vez, se foram consolidando a partir de um tipo de ignorância que se cultiva, por defeito ou por convicção. A primeira dessas crenças, fundadora da leitura que Crato andou a propor, quer nos livros que escreveu, quer nas intervenções públicas que foi protagonizando, baseia-se na ideia de que os alunos são ignorantes à espera que os professores lhes mostrem não só a luz da sabedoria, como o caminho que os irá orientar ao longo do percurso, no labirinto epistemológico que a Escola construiu para se poder aceder a essa luz redentora. Uma leitura que nos interessa abordar neste texto em função das consequências educativas dessas crenças e do modo como elas se alicerçam numa rede de preconceitos que, de algum modo, impede a sua problematização. Pode mesmo afirmar-se que os discursos que Nuno Crato foi produzindo acerca do que designa por construtivismo ou do papel da memória nas aprendizagens derivam dessa crença e da conceção messiânica que a alimenta. Estamos hoje convencidos de que o que considerávamos ser, da parte de Crato, uma leitura pouco cuidada das abordagens que em Pedagogia se constroem a partir do que genericamente se designa por construtivismo é mais uma leitura preconceituosa do que apenas uma manifestação pura e simples de ignorância e desleixo concetual.
Questão de estilo. Somos os primeiros a admitir que no campo das Ciências da Educação há perspetivas sobre o construtivismo que permitem alimentar a leitura proposta por Crato acerca desta abordagem, a qual se carateriza, de forma genérica, por aceitar e promover o que pode ser designado por autossuficiência cultural dos alunos. Trata-se de uma abordagem que merece ser publicamente discutida, o que significa que não são as críticas de Crato a essas perspetivas que discutimos, mas o modo caricatural como este as produz. Um estilo que exprime um fanatismo pedagógico quanto aos objetivos e à estratégia da sua ação como ministro e que acaba por explicar quer os programas escolares enciclopédicos que aprovou, quer as metas curriculares que impôs, sobretudo quando, em nome do rigor e da exigência, não fez mais do que atomizar o trabalho intelectual a desenvolver numa sala de aula, prescrevendo de forma prévia, minuciosa e exterior aos atores que aí intervêm o modo como são obrigados a realizar as tarefas escolares. Um estilo que esteve presente, também, na ressurreição dos exames do 4o e do 6o anos de escolaridade ou no aumento do número de alunos por turma, o que é coerente com o pensamento pedagógico de alguém que defendeu ser a memorização que garante a compreensão ou que os procedimentos têm de ser primeiro rotinizados para, posteriormente, poderem ser entendidos quanto às opções que os justificam e aos fundamentos que os sustentam. Daí que, para Nuno Crato, não tenha de se perder muito tempo com explicações ou com a construção de dispositivos que incentivem os alunos a produzirem significados para aquilo que fazem e que aprendem nas escolas.
Desilusão. Os resultados estão à vista, ainda que seja necessário reconhecer que as crenças e os preconceitos de Nuno Crato têm algum eco na sociedade portuguesa. As críticas a todos aqueles que são identificados de forma abusiva com o campo do ‘eduquês’ não vieram apenas do ex-ministro, que não foi o único a acusar os que defendem a necessidade de se valorizar o protagonismo intelectual dos alunos e a promoção das aprendizagens significativas como os responsáveis pela indisciplina, pelo laxismo e pela alegada falta de qualidade do desempenho dos estudantes. Por isso é que a nomeação de Crato para ministro da Educação foi vista por muitos docentes – mesmo por alguns que não se identificavam politicamente com o governo Coelho-Portas – como uma boa notícia, esperando que, graças às suas ideias, houvesse uma solução para os problemas vividos nas escolas e nas salas de aula. Passados quatro anos, resta apenas desilusão. Que pode ser, apesar do que todos sofremos, o legado mais valioso do consulado de Crato, caso nos ajude a compreender que os preconceitos ‘cratinos’ não se adequam às exigências e aos desafios das escolas no mundo e nas sociedades contemporâneas e que não há soluções fáceis e imediatas para desafios tão complexos como os que nos propomos enfrentar quando defendemos a necessidade de construir uma Escola congruente com os valores e os princípios democráticos.
Ariana Cosme e Rui Trindade
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