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O olho da rã e o futebol

O futebol altamente competitivo reproduz e multiplica as taras do sistema sócio-ecomómico. O sucesso desportivo depende, cada vez mais, da subjetividade, da personalidade, da educação dos jogadores e do treinador. Por isso é tão importante a sua formação humana.

Há dois anos encontrava-me em Santiago do Chile, a convite da Universidade Pedro de Valdívia. O reitor, homem mordaz e gracioso, comentando os anos que levo de estudo em relação à epistemologia da motricidade humana, contou-me o seguinte.
“Na Faculdade de Ciências da Universidade do Chile, existe um pequeno conglomerado de barracões de madeira que há muito deixaram de ser provisórios. Numa das salas pontificava o Professor Humberto Maturana e, em busca da vasta e poliédrica obra deste cientista, que o mundo todo conhece, eram muitos os alunos que procuravam o seu conselho. Há cinquenta anos, um rapaz, com um rosto de menina, liso e perfeito, mas que se distinguia por uma ilimitada curiosidade, interrogou-o: Gostava de conhecer as leis que nos levam ao conhecimento do percurso matéria-consciência. Solícito, o Professor Maturana perguntou-lhe o nome, e ele: Francisco Varela. Então, disse-lhe Maturana por fim, tens de começar a estudar o olho das rãs”.
Este curioso diálogo entre Maturana e Varela marca o início de um trabalho científico de repercussões inapagáveis na Biologia. E o que descobriram Maturana e Varela no olho da rã? Mostraram que a rã enxerga preferencialmente alguns objetos, ao mesmo tempo que ignora outros que parecem perfeitamente visíveis. O sistema nervoso não reflete fielmente a realidade, mas possui detetores, especialmente votados ao que interessa à vida do animal. De acordo com trabalhos mais recentes destes dois cientistas (Varela já faleceu, como se sabe), a perceção encontra-se subordinada à atividade global do cérebro e, em segunda instância, do organismo como um todo. Enfim, em área científica em que me sinto apoucado de conhecimentos, sou tentado a concluir com esta síntese: eu vejo como sou!

Futebol e sistema. Jorge Jesus, Julen Lopetegui e Marco Silva – refiro-me aos treinadores dos clubes portugueses Benfica, FC Porto e Sporting – não veem os três o mesmo futebol, porque são pessoas diferentes e porque são elementos de sistemas diferentes também. Para compreender, portanto, as suas decisões, não bastam os fundamentos neurofisiológicos da conduta, mas também a organização que Filipe Vieira (Benfica), Pinto da Costa (FC Porto) e Bruno Carvalho (Sporting) criaram e pretendem manter.
E que matematicamente não se explica, como a ciência clássica o pensava. Porque a inteligência, a experiência e a imaginação criadora – diferentes em cada um dos presidentes dos três “grandes” – não cabem num simples número. Acresce que, hoje, eles não são mais do que três teimosas fragilidades a viver escravas de mil condicionalismos económicos e políticos.
Não sei se estamos no fim de uma era, mas admito que o que se passou com o Banco Espírito Santo possa transformar-se numa breve ou demorada despedida de um tempo que já se encontra socialmente, e intimamente, desfigurado. Como o venho escrevendo, ao longo dos anos, o futebol altamente competitivo reproduz e multiplica as taras do sistema sócio-ecomómico que nos governa.
Onde todos acabamos vencidos – até Ricardo Salgado! “Rui Alves diz não aceitar a forma como os líderes dos três grandes estão a concentrar as decisões do futebol português” (A Bola, 07.08.2014). Mas tem de ser assim, para que não se descubra que é postiça a sua saúde e já cumprem dolorosamente o ato de viver. Pasmei de tanta suficiência e candura, na nossa seleção de futebol, no Mundial do Brasil. Sem engenho e arte para cumprir a caminhada, foi uma equipa que perdeu coletivamente o rumo.
E pior d que tudo, não se sentia em perigo de vida pelo facto de existir daquela maneira. Só o Cristiano Ronaldo não aparecia enrodilhado em si mesmo. É que a paisagem é sempre ele, os outros pouco contam. A propósito: não foi esse um dos males de que a seleção padeceu?

Desporto é vida. Jorge Jesus, Julen Lopetegui, Marco Silva não veem os três o mesmo futebol, escrevi. Por muitos motivos e mais este: o nível cultural de cada um também não é o mesmo, já que um treinador tem de ser um especialista numa das ciências hermenêutico-humanas. É um dos dados da ciência atual: do caos, da desordem, pode nascer uma nova ordem.
Ando há mais de 40 anos a aconselhar, sem sentir na boca o sarro da verborreia, que é preciso ler as páginas seletas dos grandes escritores para melhor se entender o desporto – e, portanto, o futebol. A leitura de determinados autores dá à vida uma dimensão inesperada. Ora, o desporto é vida e nada mais! E também o desporto se torna mais belo, e até mais eficaz, sempre que aos aspetos quantitativos se acrescentam os aspetos qualitativos, que afinal distinguem tudo o que é humano.
Na História, nenhuma ortodoxia é eterna. Chegou por isso o tempo de não identificar o desporto exclusivamente com a biologia.
No desporto, a biologia está integral mas superada. Herdeiros que somos de Kant e Husserl, há entre o animal e o ser humano uma descontinuidade essencial. E porquê? Porque no meio do determinismo da natureza, somos livres!
Eu sei que um processo biológico está submetido a causas, não a razões. Mas um pensamento é determinado por causas ou por razões? Por ambas? Então a Biologia e a Filosofia são necessárias.
E o que o olho da rã nos diz é que não pode explicar totalmente a visão humana. O animal faz um, com a natureza e o ser humano faz dois.

Importância da formação. Não esqueço o que aprendi em Sartre: “Uma pessoa é uma escolha absoluta de si.” Kant poderia objetar que somos também prisioneiros do passado. Recordo o anti-humanismo teórico de Louis Althusser – o Homem não é princípio, é resultado... De muita coisa que, por exemplo, um treinador deve procurar conhecer, sempre que analisa um jogador de futebol. A verdade, numa equipa de futebol, é simplesmente uma verdade científica?
Que deste sucinto bosquejo ressalte a hipótese de que numa equipa de futebol – ou em qualquer outra modalidade desportiva – a verdade não é simplesmente uma verdade científica. Aliás, uma equipa de futebol é, sobre o mais, uma verdade ou uma vontade?
Em livro que a Prime Books editou, da autoria de António Barbosa (Os Jogos Por Trás Do Jogo), pode ler-se: “Por muito que a tática funcione como identidade coletiva de uma equipa e contribua para que os jogadores atuem de acordo com princípios e subprincípios de jogo, sistematizados com o treino, muitos são os fatores incontroláveis que impõem uma imprevisibilidade num resultado. Nos dias de hoje, torna-se possível, através da análise estatística e dos avanços tecnológicos, identificar e quantificar diferentes parâmetros da equipa e dos adversários e construir estratégias para tirar partido das suas debilidades. Mas a cada momento são sempre os jogadores a tomar as decisões e a dar ao jogo um novo rumo.”
Por isso, eu digo que não há periodização tática, mas periodização antropológica e tática. O sucesso desportivo depende, cada vez mais, da subjetividade, da personalidade, da educação dos jogadores e do treinador. Por isso é tão importante a formação humana dos jogadores e do treinador!

Manuel Sérgio


  
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