Temos de nos interrogar se o que vemos, ouvimos e lemos não é já a Cidade de um deus ex machina onde os titãs não passam de títeres mascarados e pintados com números e cifrões, porque o tempo de outros homens sem máscaras nem tintas ainda há de vir.
Vendo, ouvindo e lendo, não nos podemos enganar nem consentir que nos enganem. Não somos prisioneiros da Caverna de Platão, condenados a não distinguir nas sombras o que é a realidade e a aparência. E não podemos nem devemos aceitar que um foco de luz nos convença de que a vida é um constante carnaval de máscaras, que se põem e tiram, já que o Carnaval do calendário só dura três dias e ao quarto vem a Quaresma: cinzas, privações (carnis valles) e meditação. De certo, haverá sempre os indiferentes a qualquer liturgia, ética ou habituação, induzidos a repetir um provérbio kimbundu que diz: “Comamos o nosso mel sem nos importarmos com o que a abelha faz ou por onde a abelha passa.” Olhando à nossa volta, vemos que essa “filosofia” é trasbordante, inundando as tribunas e os meios de comunicação social em voga. Mas outra há: Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar / Relatórios da fome / O caminho da injustiça / A linguagem do terror. São palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen, que logo nos acodem à memória nas vozes de Francisco Fanhais e Luís Miguel Cintra, evocando tempo não longínquo que ainda nos dói. Era esse um tempo de roxa e penitencial quaresma, sem a luz e o vermelho vivo de um festivo e pascal Abril, à feição de um deus sive natura. Todavia, carpe diem!, clamavam os ex-prisioneiros foragidos da Caverna. A vida é curta, temos de aproveitar os momentos propícios ao desanuviamento e à descontração da humana natureza, que é bipolar (num intervalo triste, noutro alegre), como é o período do também chamado Entrudo, festejado desde há séculos para agradecer aos deuses as boas colheitas do ano. Na Roma Antiga (600 a.C.), a festa durava alguns dias, com copiosos manjares e libações, em que as atividades marciais e laborais eram suspensas, os escravos gozavam de alguma liberdade, as restrições morais eram relaxadas e até se parodiava com máscaras e vestimentas pícaras os ricos e os poderosos. “No Carnaval ninguém leva a mal.” – era a “lei” durante as também chamadas saturnálias, para honrar o controverso deus Saturno no período de um reinado de paz e prosperidade, considerado a “Idade de Ouro”, pelos benefícios de uma agricultura nova e desenvolvida. Depois, O tempora! O mores!, observava Cícero. E quando o cristianismo sucedeu ao tempo pagão, Santo Agostinho, distinguindo a Cidade de Deus da Cidade do Homem, alertava: “O tempo é o espaço onde decorrem as coisas.” Obviamente, as boas e as más, já que, como diria Luís de Camões alguns séculos depois, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Do tempo da nossa memória, hoje, ainda a voz de Sophia: Tempo de solidão e de incerteza / Tempo de medo e de traição / Tempo de injustiça e de vileza / Tempo de negação // Tempo de covardia e tempo de ira / Tempo de mascarada e de mentira / Tempo de escravidão / Tempo de coniventes sem cadastro / Tempo de silêncio e de mordaça / Tempo onde o sangue não tem rasto / Tempo da ameaça. Perante tantas ressonâncias no mesmo tempo planetário, em que os deuses antigos, como Mercúrio, Jano ou Minerva, desapareceram, se não foram amarrados como Saturno durante o Carnaval, e ainda não é previsível a Cidade de Santo Agostinho, temos de nos interrogar também se o que vemos, ouvimos e lemos, depois da Páscoa, logo sobre as “bem-aventuranças” da Física Quântica, não é já a Cidade de um deus ex machina onde os titãs não passam de títeres mascarados e pintados com números e cifrões, porque o tempo de outros homens sem máscaras nem tintas (animus meminisse horret) ainda há de vir.
Leonel Cosme
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