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A transparência que esvazia e a invisibilidade que exclui

O conflito moral que a transparência ou a invisibilidade provocam nas relações intersubjetivas pode constituir-se numa fonte de literacia moral e cívica se se abrir e desencadear um movimento de reconhecimento mútuo entre cidadãos.

Em nenhuma outra época, como esta em que vivemos, o espaço público foi tão dominado pela exigência de transparência da informação. Desde a esfera política e social à económica, passando pela privada, e até íntima, esta Sociedade da Transparência (Byung-Chul Han - Relógio D’Água, 2014) enclausurou o presente, destituindo-o de significado e de futuro. Mais, apaga as marcas da singularidade dos sujeitos porque, na medida em que a velocidade da informação provoca uma reação em cadeia do igual, vai erigindo um inferno do igual. Na expressão de Byung-Chul Han, “a negatividade do outro e do estranho, ou a resistência do outro, perturba e atrasa a comunicação lisa do igual. A transparência estabiliza e acelera o sistema através da eliminação do outro e do estranho”.
A plena visibilidade, sem sombras, máscaras ou disfarces, enfim, a experiência de se ser visto e saber-se visto, sem ver, instaura uma lógica próxima do terror: a vítima é vista, mas não vê; inteiramente exposta e desnudada sente-se desprotegida; permanecendo cega para a origem da sua exposição, é incapaz de a identificar ou nomear, ainda que sinta a sua presença ameaçadora. Neste olhar coisificante, a pessoa tornada vítima reduz-se a objeto e é nesta condição que a sua visibilidade é focalizada e enaltecida na Sociedade da Transparência. O que se vê não é a pessoa na sua singularidade e a sua hipervalorização tem por função produzir um prazer luxuriante para efeitos de sua manipulação.
Constituindo a vulnerabilidade uma marca antropológica da condição humana, o excesso de exposição do ser humano no espaço público cria as condições da sua fragilização social. São variadas as explicações que nos permitem compreender as razões que produzem quer a transparência que fragiliza e esvazia certos seres humanos, quer a invisibilidade que os oculta ou exclui. O olhar que fragiliza é, por conseguinte, performativo, na medida em que, esvaziando as pessoas da sua densidade existencial e ontológica, as vê com estigma e preconceito, dissolvendo a sua identidade e substituindo-a pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe deseja impor.
Dever-se-á perguntar se a projeção de preconceitos e a atitude de domínio próxima do terror, adotadas nas relações intersubjetivas no espaço público das sociedades contemporâneas, resultam mais das inclinações psicológicas dos intervenientes e menos das condições históricas da evolução de uma dada sociedade; ou se, pelo contrário, constituindo a agressividade e o preconceito uma componente empírico-epistemológica do sujeito que olha, tal agressividade se exponencia em estruturas socioculturais que legitimam a eliminação social do outro (tornando-o invisível) ou a sua coisificação (tornando-o transparente) em termos antropológicos e éticos.

A Pedagogia Social. A convivência social encontra-se numa encruzilhada moral neste contexto da sociedade da informação. Urge potenciar a aprendizagem social das pessoas para o desenvolvimento de competências de literacia moral, para que, interpretando os ferimentos morais de que são vítimas os seus concidadãos, saibam desconstruir a progressiva sedimentação de uma subcultura urbana que, por excesso de exposição do outro, o fragiliza ou, tornando-o invisível, exclui. A Pedagogia Social está desafiada a descobrir, a mediar e a propor as condições intersubjetivas da integridade pessoal no espaço público para fazer emergir, a partir de uma comunidade de valores e de finalidades partilhadas em comum, dinâmicas de reconhecimento mútuo e solidário dos sujeitos. Não obstante estarem garantidos na esfera jurídica quer o bom nome, quer os direitos de cidadania dos sujeitos, a força solidarizante da estima mútua que só os laços sociocomunitários podem proporcionar ultrapassa largamente os direitos formais garantidos.
O conflito moral que a transparência ou a invisibilidade provocam nas relações intersubjetivas pode constituir-se numa fonte de literacia moral e cívica se se abrir e desencadear um movimento de reconhecimento mútuo entre cidadãos. A vocação mediadora da Pedagogia Social há de exprimir-se, então, numa pragmática a duas dimensões: por um lado, desmascarar, pelo diálogo confrontador, os ferimentos morais de que padecem homens e mulheres de rosto invisível ou esvaziado de mistério no âmago da vida social; por outro lado, ajudar a construir espaços intersubjetivos de reconfiguração identitária nunca terminada. Quando o rosto do outro não aparece na sua singularidade e provoca um sentimento de indignação moral em nós, já estamos a romper o ciclo da sua transparência/invisibilidade.

José Luís Gonçalves


  
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