A Escola tornou-se tributária de um modo de organizar a vida social e o trabalho que faz do ato de aprender um ato de dependência. É tempo de operar um exercício de imaginação epistemológica e arriscar numa educação dialógica assente na pedagogia situada.
Charles Wright Mills propôs, em 1959, um dos conceitos mais inspiradores da Sociologia – a ideia de imaginação sociológica. Fê-lo porque acreditava no poder de um conhecimento novo, capaz de se inscrever na vida social das coletividades para servi-las. Como? Transformando “problemas pessoais em questões públicas”. Ora, tanto na sua época como hoje, verificamos que é aqui que reside o desafio de tantos educadores cuja praxis tem insistido em partir dos pressupostos de uma educação crítica de tipo emancipador para transformar o tradicional papel da instituição escolar. Porquê? Porque sabemos, refletindo criticamente acerca da história da instituição escolar de massas, especialmente nos países industrializados, que a sua agenda é de reprodução social. A crítica ao currículo oculto da Escola desvelou que nela se aprende desigualmente porque desigual é a sociedade de classes. Ou seja, a Escola tornou-se, durante demasiado tempo, tributária de um modo de organizar a vida social, e o trabalho, que fez do ato de aprender um ato de dependência. Assim sendo, o que nos parece essencial, ontem como hoje, é operar aquilo que gostamos de designar, na esteira de Mills, como um exercício de imaginação epistemológica. De que se trata? De repensar os mecanismos científicos e pedagógicos (de exclusão) que fundaram a estruturação hierarquizada e especializada do conhecimento desenvolvido no âmbito da ciência moderna. Desde esta ótica, o que se torna importante conhecer na sala de aula não é tanto sobre as matérias curriculares de estudo especializado, mas, antes de mais, os porquês do modo segundo o qual aprendemos da forma que aprendemos nas instituições escolares. Ou seja, trata-se de indagar acerca do modelo global de racionalidade científica de que herdamos um certo “modo legítimo de aprender” que carateriza o paradigma dominante. Este racional condensou-se no positivismo oitocentista, cartesiano e baconiano, que, desde então, em lugar de criar cientistas filosóficos, criou cientistas mecanicistas.
Desafio político. Ora, uma das ousadias que Paulo Freire atribui ao quotidiano do professor crítico é a de intentar romper com a educação que gera dependência. Dos vários pressupostos filosóficos que fundamentam a sua proposta aprazem-nos, especialmente, dois: o que entende que a construção da autonomia pela educação passa pela capacidade de fazer uma pedagogia situada; e o que promulga como método desta educação a dialogicidade. Porque é no Ensino Superior que nos movemos quotidianamente, subscrevemos, como ele, que “a universidade tem uma responsabilidade social a cumprir junto dos demais graus de ensino e uma contribuição fundamental a dar no que diz respeito à compreensão do conhecimento”. E é aqui que, para nós, reside o desafio político de defender uma educação holística e pública, cujas prioridades científicas de estudo sejam definidas de modo situado e pela livre circulação da palavra dos protagonistas da ação educacional. Este modo de proceder será tanto mais importante quanto em causa estiver a formação de educadores e professores que, dentro ou fora da escola, suscitem processos de cariz educacional. Porquê? Porque a educação dialógica é uma posição epistemológica. No nosso entendimento, uma pedagogia da pergunta é suscitada e suscita sobretudo uma educação holística. Por isso, trata-se de introduzir nas clássicas matérias curriculares os conceitos de historicidade e de processo, de liberdade e de autodeterminação. Para que tal seja possível, parece-nos urgente, por um lado, operar (consequentemente) um trabalho educacional crítico que se baseie na superação das distinções dicotómicas da ciência moderna – que, nas palavras de Boaventura Sousa Santos, “pela excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico, fez do cientista um ignorante especializado” – e, por outro lado, um trabalho educacional radical que entenda a Educação como bem público que produz um conhecimento holístico, local e global que será, deste modo e antes de mais, património comum da humanidade.
Mudança de paradigma. Paulo Freire, uma vez mais, disse-o melhor que ninguém: “A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar: onde se propõe a construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico, científico, mediados pelas experiências do mundo.” Utópico? Sim, porque, como sentiu com clarividência Eduardo Galiano, a utopia serve para caminhar. Foi talvez por isso que, há 30 anos, Boaventura Sousa Santos afirmou que “no paradigma emergente o conhecimento é total (...) e constitui-se em redor de temas que em dado momento são adotados por grupos sociais concretos como projetos de vida locais”. Ou seja, também ele sentiu, com clarividência, que a fragmentação necessária não é disciplinar, mas temática. Portanto, consideramos, arriscar é preciso. Não como solicitação, mas como constatação. Era isso, aliás, que a revista Visão divulgava em março: a Finlândia prepara-se para acabar com as tradicionais disciplinas nas escolas, até 2020, e passar a conceber o ato de ensinar-aprender “recorrendo a grandes temas ou fenómenos”, e assim “evitar a célebre pergunta – mas afinal, para que é que isto serve?”. Ora, arriscar numa educação dialógica assente na pedagogia situada para educar os educadores e professores é preciso porque essa outra educação – pensada como permanente, assumida por todos os membros da comunidade e, como tal, relacionada com todas as dimensões da vida quotidiana – será “uma educação que permita, vivendo e aprendendo, saber por que se vive e por que se aprende”, conforme Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira acreditaram sempre. Vale a pena arriscar.
Rosanna Barros
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