Há qualquer coisa de visceralmente paradoxal na nossa natureza; se olharmos à nossa volta, percebemos a complexidade dos fenómenos (naturais, sociais) como somos capazes de perceber que as ‘grandes’ soluções para os enormes problemas estão, regra geral, na simplicidade.
A história da Escola como (ainda) a conhecemos hoje evoluiu no sentido gradual da especialização do saber e, ao fazê-lo, distanciou-se alarmantemente da essência das coisas e das situações a que o saber procura aportar soluções. A abstração do saber veiculado pela Escola não é um problema por causa do exercício da abstração (esse é constitutivo do próprio desenvolvimento cognitivo), mas por causa do ponto a que chegou esse exercício; legitima-se a si próprio, independentemente de não servir para grande coisa, a não ser retroalimentar-se na sua contemplação. Há qualquer coisa de preocupantemente errado no projeto da Escola quando ela estabelece as idades que contempla sem um entretanto, mas sempre em função de um qualquer fim, tanto mais patético quanto esse fim existe numa idade que estará para além dessa mesma escola. Aquilo que seria a sua essência – aprender a construir uma relação com o saber, não porque ele não possa ser aprendido noutros lugares, mas porque a Escola lhe confere uma configuração assistida, de auxílio (daí o sentido do aprender) – transforma-se num exercício de pauta, de programa, no cumprimento de um itinerário, o qual, porque não deixa alternativas, reduz a diversidade, a singularidade, a genialidade a uma fórmula. Depois desse percurso está-se finalmente preparado para... cumprir um outro percurso – o da prestação de contas do longuíssimo investimento que foi feito na educação formal. E se a estupefação não fosse já grande, invoca-se agora, permanentemente, a necessidade de entrar nesta grande máquina processadora o mais precocemente possível. Claro que se os meninos e as meninas aprenderem, já no Pré-Escolar, as primeiras letras, as contas e as leituras, quando entrarem na Escola, aquilo desliza que é uma maravilha! Não deixa de se evidenciar, nestas opções, uma insistência para montante no sentido da especialização, quando o mundo e os recursos tecnológicos disponíveis – até para, ou sobretudo para, as crianças – evidenciam uma realidade a todos os títulos contrastante com estas opções.
Trabalhar uma tensão. Em que se baseia, afinal, a ideia das escolas finlandesas que trabalham por tópicos? Claro que parece haver algo de profundamente positivo no princípio organizativo, que aborda os problemas na sua complexidade multi e interdisciplinar e não em fórmulas disciplinares que não deixam de ser ‘apenas’ um olhar sobre os problemas. Mas as finalidades não mantêm permanente a preocupação de distanciar os sujeitos do tempo da sua vivência? Sempre pensando no desiderato primordial de potenciar a economia do país? Pobres crianças! É, certamente, um debate interessante e necessário. Mas importa não construir, mais uma vez, um discurso que transpõe a experiência dos outros, lida a partir dos resultados e não dos modos de fazer, para a ‘ajustar’ ao nosso país. Recordo os exemplos da Área de Projeto, do Estudo Acompanhado e da Formação Cívica, áreas que se pretendiam não disciplinares e que poderiam ser o germe de transformações importantes da Escola – se o trabalho de projeto fosse entendido como modalidade de aprendizagem; se o estudo acompanhado efetivamente acentuasse a importância da construção de uma relação com o saber; se a formação cívica reiterasse o primado da cidadania – e aquilo em que acabaram por se transformar: a Área de Projeto fugia aos conteúdos disciplinares, era remetida aos professores das componentes artísticas e servia o pretexto de visibilizar alguma iniciativa dos alunos; o Estudo Acompanhado era entendido como mais do mesmo, isto é, reforço dos tempos letivos das disciplinas ‘nobres’; a Formação Cívica era (estritamente) disciplina, no seu sentido substantivo e até etimológico (as vergastas com que clérigos se autopuniam). Quando se fala de aprendizagens que tenham sentido para os alunos, importaria envolvê-los nesse debate; porque não se trata de um (novo) sentido construído pelos adultos, tal como não se trata de esperar que as crianças revelem aquilo que não são capazes de revelar. Trata-se de trabalhar uma tensão, na qual o papel dos adultos terá sempre uma dimensão de exemplaridade incontornável.
Henrique Vaz
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