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O vírus da (sobre)vivência académica

Os tempos que correm são tempos de ambivalência, erosão de fronteiras, coisas difusas, penumbras, tempos líquidos (para usar a conhecida metáfora de Zygmunt Bauman). E são também tempos de incongruências, de instabilidade nos sistemas de valores, de dificuldades várias em explicitar e assumir visões do mundo, de superficialidade nos sentimentos, de alianças (logo anunciadas como provisórias), de taticismos, de sobrevivências, de chico-espertismos – expressão, aliás, glosada por José Gil quando fala do espírito português “pequenamente pragmático”.
Muito embora tudo isso esteja a tornar-se vulgar e evidente, como facilmente podemos constatar se estivermos atentos às práticas sociais, nomeadamente em contexto de trabalho, não basta para eu acreditar na existência (determinista) de um qualquer espírito português assim caracterizado. Nunca interiorizei fórmulas ou representações sociais essencialistas, através das quais pudesse interpretar ou inferir o comportamento de todos os meus concidadãos e concidadãs. E porque há mil outras formas de ser e de estar (e sempre houve, mesmo nas circunstâncias mais adversas), o que tenho em mente não me parece generalizável, muito embora sinta que, em muitos casos, as ações individuais parecem ser a mais óbvia consequência da contaminação provocada por um capitalismo radicalizado que dispensa qualquer outra preocupação que não a sua própria continuidade.
É por referência a este contexto mais amplo que constato, por vezes, o desprezo da coerência em favor da sobrevivência, o ‘carreirismo’ e a procura das benesses dos pequenos poderes, em vez da liberdade de pensamento e da assunção de princípios éticos e políticos. No campo académico, atravessado, como outros campos, por uma pluralidade de contradições e tensões, é particularmente paradoxal – sobretudo no que diz respeito à liberdade de pensamento e de pesquisa – querer estar sempre de bem com todos e em qualquer situação e/ou usar a tática de aderir a qualquer agenda mesmo que isso signifique fugir de qualquer posicionamento crítico para manter uma desejada (mas impossível) neutralidade.
O ‘carreirismo académico’ – sobretudo em certas áreas do conhecimento onde são particularmente dominantes as linguagens concorrenciais e os sentidos e significados não consensuais, bem como as disputas pela legitimidade interpretativa e argumentativa – expressa-se, frequentemente, em práticas que tendem a desconhecer ou desvalorizar a necessária reflexividade crítica e a validação intersubjetiva (no sentido habermasiano) e, em consequência, a corrida pelos scores e pelos índices de impacto facilmente dispensa o diálogo com os pares e o estudo sistemático e aprofundado, já que se desata a escrever e a publicar sobre tudo, a qualquer momento, de qualquer forma, naturalizando autores, vindimando agendas e problemáticas, numa atitude “pequenamente pragmática” e indiferente à historicidade e politicidade dos conceitos e ao rigor teórico-concetual de que nenhuma ciência (muito menos da Educação) pode ser dispensada.
Talvez por isso, pode ser desmotivador semear uma leira numa terra queimada, quando esta resulta da simplificação teórico-concetual e da naturalização (muitas vezes intencional) de visões políticas, atitudes éticas e perspetivas ideológicas, sobretudo sabendo que estas nunca são conciliáveis e redutíveis e que é nesta condição que subjazem a todas as fontes, a todas as autorias, a todas as tradições intelectuais e identidades, também científicas e académicas.
No contexto de uma doentia hipocrisia (muito diferente do sentido que Nils Brunsson lhe atribui em «A Organização da Hipocrisia»), estas atitudes contribuem para corroer lentamente a vida académica, em geral, e alguns campos disciplinares e interdisciplinares, em particular – e eu não consigo deixar de me indignar com isso, sobretudo porque são atitudes que maximizam o efeito nefasto dos ataques de que as ciências sociais e humanas – e dentro delas as ciências da Educação – e os seus profissionais são alvo, a partir dos discursos dos porta-vozes de lobbies conservadores, frequentemente concretizados em medidas reacionárias e reveladoras de profunda ignorância daqueles que nos (des)governam.
Mas há alguns antídotos que podem contrariar estas tendências, nomeadamente no que diz respeito às áreas de conhecimento que têm estado mais frequentemente sob o ataque de setores ideológicos referenciáveis à nova direita. Um deles tem a ver com a assunção mais explícita de diálogos e práticas de investigação cada vez mais interdisciplinares, não apenas no interior das ciências da Educação, mas também no campo mais amplo das ciências sociais e humanas e de outras ciências.
Abrir, ou continuar a abrir, as ciências da Educação para o campo mais vasto das ciências sociais e humanas, e mesmo de outras ciências, não se traduzirá, por razões óbvias, numa forma de superar défices de legitimidade científica acumulados (tarefa que não é transmissível), mas é certamente uma oportunidade de realizar outras interlocuções, ampliar pontes, perceber diversos olhares, aceitar outros escrutínios e desafios – passos necessários para fortalecer sinergias e encontrar novas alternativas de sentido. É no confronto com os outros que fortalecemos a nossa própria identidade, e talvez assim sejamos mais capazes de atacar o vírus da (sobre)vivência académica a qualquer custo, e de continuar a confirmar que há muitos conhecimentos legítimos no campo científico.

Almerindo Janela Afonso


  
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