Quarenta anos de democracia em Portugal e quase outros tantos da recomendação da UNESCO sobre a Educação de Adultos foram insuficientes para mobilizar a sociedade, as elites e os poderes públicos para levarem a sério o direito da população adulta à educação.
Temos hoje, em Portugal, uma política pública de educação e formação de adultos? A pergunta é retórica e a óbvia resposta negativa sublinha a visível ausência. De resto, aquele campo de atividade não é sequer tematizado e reconhecido como objeto de políticas públicas pelo atual governo português; a Agenda Europeia para a Educação de Adultos 2012-2014, proposta pela União Europeia, ficou atribuída à Agência Nacional para a Qualificação e Ensino Profissional em Portugal. A dificuldade em obter sequer informação e formar uma perspetiva global, em romper a opacidade de um não-assunto, é expressão da contínua persistência deste projeto bloqueado pela invariante estrutural da ausência de uma política pública global e integrada de educação e formação de adultos (EFA), repetidamente denunciada por investigadores e pedagogos desde há décadas [entre outros, Alberto Melo, Licínio C. Lima e Mariana Almeida: «Novas Políticas de Educação e Formação de Adultos». ANEFA, 2002] Este é, porventura, o maior défice no campo dos direitos, da cidadania e do desenvolvimento e o mais grave incumprimento do Estado português, nestes 40 anos de democracia. A negligência persistente face ao direito à educação da população adulta está bem expressa na fratura geracional da sociedade portuguesa: “Em 2011, a população residente com 15 e mais anos de idade apresenta situações de grande contraste, registando-se 3.378.335 indivíduos sem nenhum nível de qualificação ou com apenas o 1oCEB e, simultaneamente, 2.744.566 indivíduos detentores de Ensino Secundário, Pós-Secundário e Ensino Superior” [«Estado da Educação 2012». CNE, 2013]. E se alguns passos e avanços importantes foram dados entre 1995-1999 e 2011, os poderes e decisores da altura não optaram por criar e consolidar uma política e um sistema públicos permanentes, globais e integrados de EFA. Por isso foi tão inacreditavelmente fácil para o atual governo acabar com o programa temporário e os organismos provisórios que estavam no terreno... E dezenas de milhares de adultos, milhares de profissionais, centenas de organismos e entidades desapareceram do campo das políticas públicas de EFA.
Passos atrás. Podemos refazer o percurso, ainda que muitas nebulosas e lacunas permaneçam. Mas vale a pena tentar organizar a informação e esboçar um roteiro de observações. Em dezembro de 2011 iniciou-se o encerramento dos Centros Novas Oportunidades (CNO), organismos emblemáticos da Iniciativa Novas Oportunidades-Vertente Adultos, a estratégia simbólica da política de EFA dos governos desde 2005. As candidaturas a financiamento foram permitidas apenas para o período janeiro-agosto de 2012. Iniciou-se aqui um período de cerca de um ano em que testemunhamos opções políticas de fechar todos os CNO, deixando sem resposta educativa dezenas de milhares de adultos já inscritos e envolvidos; de transferir adultos entre centros, sem contemplações de conveniência, sem auscultação ou negociação; de despedir milhares de profissionais, com vários anos de experiência e formação contínua em EFA, muitos com formação pós-graduada e especializada na área. Iniciadas que foram as candidaturas para abrir Centros para a Qualificação e Ensino Profissional (CQEP), em abril de 2013, sendo anunciada no final do ano a criação de uma rede de cerca de 200 organismos, desde cedo se percebeu que o mandato para os CQEP não compreendia a construção de respostas educativas à altura das necessidades sociais de EFA. Indicavam-no o exíguo financiamento, a insuficiência de recursos, as precárias condições de funcionamento, a dimensão minimalista das equipas de profissionais, a grosseira escolarização – com a avaliação por exame nos processos de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC) – e o acolhimento dos públicos jovens (a partir de 15 anos) a par dos adultos. Em boa medida paralisados durante parte de 2014, tanto quanto se pode perceber, dado o silêncio reinante, os CQEP parecem inserir-se, sobretudo, numa política de gestão do desemprego e de organização da transição profissional através da educação/formação. Por outro lado, mesmo quando há grupos de adultos formados para alfabetizar, as respostas institucionais são negadas, como se os decisores recusassem reconhecer a existência destes portugueses ou, pior ainda, o seu direito fundamental à educação e a obrigação do Estado de criar respostas à altura dessa necessidade básica.
Situação atual. Chegados a 2015, no que à política de EFA respeita, pouco mais temos do que informação indireta: estatísticas do IEFP, que registam cerca de 50 mil adultos envolvidos em cursos EFA em 2013 e um pouco menos até novembro de 2014 [Relatório Mensal de Execução Física e Financeira (dez.2013 e nov.2014]; estatísticas oficiais do INE, que apontam também cerca de 60 mil adultos inscritos (2013) em cursos EFA, processos de RVCC e formações modulares certificadas de nível básico e secundário [Estatísticas da Educação 2012/2013 - Adultos]. Este conjunto fragmentado e desarticulado de respostas, desenvolvidas no quadro de políticas de gestão do desemprego, está longe de contribuir para uma política de EFA e mesmo muito longe de responder às necessidades socioeducativas da população adulta portuguesa, em particular aquela mais duravelmente abandonada pelos poderes públicos e hoje certamente mais fragilizada e vulnerável, face aos riscos, inseguranças e exclusões gerados pela turbulência económica. Depauperados por políticas regressivas, de que faz parte este enorme retrocesso que vivemos no campo da EFA, testemunhamos o desenrolar de uma estratégia em que se sucederam a descredibilização e o desinvestimento e a diminuição e a desarticulação das respostas socioeducativas à população adulta portuguesa. Quarenta anos de democracia e quase outros tantos de entrada em vigor da recomendação da UNESCO sobre o desenvolvimento da Educação de Adultos (1976), revelaram-se insuficientes até hoje para mobilizar a sociedade, as elites e os poderes públicos para levar a sério o direito dos adultos à educação.
Fátima Antunes
|