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A escola com que sempre sonhei

Mais uma tarde em que a Joana saía da escola com um suspiro preso no peito, arrastando os pés, de olhar cabisbaixo, olhos no chão e a mochila mal pendurada, como se ansiasse deixá-la perdida no próximo canto. Fiquei preocupada. A situação repetia-se há algumas semanas. A escola tinha começado há dois meses e, cada dia que passava, a Joana parecia que mostrava mais resistência a ir para as aulas.
Era tudo um pouco estranho, quando, antes do início do ano letivo, sempre víamos a Joana como uma criança precocemente interessada em conhecer todas as coisas. A curiosidade e a alegria estavam sempre no seu olhar. Antes ainda de ir para a escola, tinha conseguido descobrir, sozinha, pequenas estratégias para aprender a ler. Tinha vindo ter connosco, um fim de tarde, para nos fazer uma surpresa – já conseguia ler, e mostrava a sua competência ao decifrar algumas palavras e, mais tarde, pequenas frases.
Na rua, ia lendo cartazes, títulos de jornais; gostava de mostrar que era capaz de ler nomes de produtos, de objetos simples. Já começava a escrever pequenas palavras, entusiasmava-se com jogos e pequenas charadas, esperando ansiosamente o dia de ir para a escola “dos meninos grandes”. Estava curiosa e em ansiosa expectativa. Expliquei-lhe que na escola era tudo muito divertido, que ia aprender muitas coisas novas e a ler ainda mais e melhor, de tal forma que o poderia fazer mesmo sozinha, nos livros de histórias de que tanto gostava.
Mas as coisas não estavam a correr bem na escola. A Joana é uma criança doce, imaginativa, mas introspetiva; tímida, mas determinada, que procura no seu mundo próprio a justeza das coisas e a razoabilidade dos discursos e das proposições dos adultos.
Falar com a professora foi um pouco inútil; para ela, a Joana estava sempre em défice, atrasada, não cumpria rigorosamente as tarefas que lhe apresentava e perdia-se no tempo. “Dá-me um cansaço!”, queixava-se, diante da Joana. E a Joana baixava os olhos, fixava a ponta dos sapatos e não respondia quando eu lhe perguntava porquê, porque não fazia o que a professora pedia.
Nesse dia a tristeza da Joana, visível no rosto, na postura corporal, nos movimentos desalentados, fez-me sentir ainda mais a necessidade de tentar perceber o que se passava. Decididamente, tínhamos de ter uma conversa calma e solta, para que ela se abrisse.
Fomos falando pelo caminho e continuámos, depois, em casa, antes de os irmãos e o pai chegarem. Eu insistia pacientemente, pedindo-lhe que me ajudasse a perceber o que se passava. A Joana, no início, mantinha-se no seu mutismo triste, mas depois foi dizendo que não percebia nada do que a professora queria: mandava-a repetir e voltar de novo a repetir a mesma frase que ela já tinha dito e que estava correta; queria que copiasse várias vezes o que ela escrevia no quadro, e zangava-se se ela tentava ler o que lá estava escrito, dizendo que isso não interessava; e nem sempre ela tinha tempo para fazer todas as cópias que faziam na sala. Então, a Joana confessou que ficava perdida, a pensar em coisas boas, como a casa, os irmãos, a mãe, o pai e cavaleiros e princesas, e então não copiava tudo.
— E lembras-te, mãe, quando uma vez estivemos as duas a tentar perceber o que era aquele desenho que a professora mandou para eu fazer a legenda em casa? Estava mal fotocopiado e não se percebia. Tu achavas que era uma cama e eu pensava que era uma mesa. Depois eu escrevi mesa e a professora riscou com uma grande cruz vermelha e disse que estava mal porque se via logo que era um livro e que, além disso, não podia escrever mesa porque ainda não tínhamos chegado ao “S” que se lê “Z” entre as vogais. E disse que eu nunca percebia nada. Depois, fez o mesmo com aquela fotocópia de uma flor que também não se percebia muito bem; eu escrevi rosa e ela riscou porque disse que era uma dália. Para ela, tudo o que faço está sempre mal. Até por causa daquilo que me disseste, que não se devia escrever tá bem, mas está bem, ela ralhou comigo: no texto que ela mandou copiar, eu escrevi está em vez de tá, como ela tinha escrito. Riscou logo a vermelho e disse que eu nunca fazia nada direito. Estou farta da escola, mãe! E acho que tu me enganaste, disseste-me que a escola era uma coisa boa, mas não é nada. Tu mentiste-me, mãe!
E a Joana poderia ter acrescentado, como diria Ruben Alves: “Esta não é a escola com que sempre sonhei”.

Angelina Carvalho


  
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