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Cantar não foi (talvez) suficiente

Acordes para uma (im)provável sessão de canto de intervenção de hoje e de sempre. Adaptado de “Os Cantos-Hinos da Liberdade. Finalmente o País de Abril!”, capítulo de revisão e atualização de «Música Popular Portuguesa – um ponto de partida», que aguarda oportunidade para ser reeditado.

 

Se poeta sou / sei a quem o devo: / ao povo, a quem dou / os versos que escrevo...
“A canção é uma forma de dizer coisas às pessoas. Uma maneira de levar as pessoas a debruçarem-se sobre os seus próprios problemas. Importa, no entanto, salientar que as soluções devem ser encontradas pelos próprios interessados, através da prática quotidiana, da discussão colectiva e da acção das suas formas de organização.”
(Manuel Freire, 1973)

Canta, camarada, canta, / canta, que ninguém te afronta / que esta minha espada corta / dos copos até à ponta...
“Isso de intervenção parece-me de facto uma abstracção, mas é a palavra que nós encontrámos para designar o nosso tipo de cantigas, o nosso tipo de acção, que é simultaneamente acção de cantores, de homens políticos, de dinamizadores – tudo isso entre aspas, porque duvidamos também dos limites e da projecção dessa acção. Só encontrámos esse termo! Havia a expressão “canto livre”, havia a expressão “cantigueiro”, mas achámos que nada disso se ajustava. Depois, muito recentemente, surgiu essa palavra, nem sei como...”
(José Afonso, 1976)

Canta ceifeiro canta / canta com ânsia e bravura / e que o canto se levante / dê mais força à tua altura.
“A história de uma arte é sempre a história de um povo e, portanto, não se pode dissociar, de maneira nenhuma, a música dos acontecimentos, da gente, do país. A determinante máxima dessa música portuguesa será, simultaneamente, a conjugação de formas sempre a redescobrir, sempre a inventar, com a possibilidade de se cantar aquilo que vai sendo o acontecimento do dia-a-dia. Penso que é concretamente aquilo que nasce do dia-a-dia, que nasce das situações que se vivem. Em todo o lado, a arte é a expressão da vida de um povo: se isto é verdade em relação à arte, por que não o há-de ser também para a música? Porque a música é um grito inventado pela dor. E pela alegria também.”
(Francisco Fanhais, 1974)

Ergue-te ó sol de verão / somos nós os teus cantores / da matinal canção / ouvem-se já os rumores / ouvem-se já os clamores / ouvem-se já os tambores...
“A canção de intervenção visa genericamente aquilo que já foi definido nas intervenções anteriores. É uma tentativa de infiltração na marcha social, ou melhor, na luta de classes. Combate à inércia, à partida, é igualmente uma relação entre a canção em si própria e as massas populares a quem se deve dirigir e provém de uma outra relação que não tem a sua origem apenas na música, mas numa dinâmica que se estabelece no preciso momento em que se canta. Afinal, só existe canto de intervenção quando estes factores existem. Tudo se resume nisto: para quem cantamos e em que circunstâncias cantamos?”
(José Afonso, 1977)

Canto a raiz do espaço na raiz do tempo / e os passos por andar nos passos caminhados...
“O canto de intervenção é aquele que consegue encontrar uma razão de ser, como reflexo da situação política do país, nas formas de luta dos trabalhadores, das massas populares, pelo avanço político na sua luta por melhores condições de vida, etc.... Em suma, é aquele que consegue a sua razão de ser e os meios de que se socorrem nessa luta, nas posições ideológicas que melhor servem esses interesses, nomeadamente dos extractos mais progressistas dessas camadas. Por um lado, arranja aí os seus temas e, por outro, vai ao seu encontro, acompanhando-o a par e passo, como seu complemento na luta política.”
(Adriano Correia de Oliveira, 1977)

Menino pobre o teu lar / queira ou não queira o papão / há-de um dia / cantar esta canção...
“A canção de intervenção implica um envolvimento com identificação crescente do próprio cantor com aquilo que se está a passar nas diversas lutas, por mais heterogéneas que sejam, nas quais ele, de certo modo, intervém. Mas ele não intervém apenas ao nível da canção. A sua identificação com essa luta compromete-o como homem político. Esse compromisso exige uma assiduidade permanente em tais ou tais circunstâncias. Antes de se identificar a nível da canção ou do que ele vai fazer, exige-se um outro tipo de identificação – a política. Assim, essas intervenções passam a ser de tal forma constantes, essa exigência de estar presente nos mais diferentes locais passa a ser de tal forma, que um indivíduo deixa de ter tempo para fazer canções.”
(José Afonso, 1976)

Canto o meu poema de revolta / ao povo morto que não quer gritar / que já são horas para ser feliz / que é chegado o dia de o medo acabar...
“Nunca se conseguirá fazer uma substituição do nacional-cançonetismo. Mas consegue-se realmente passá-lo para segundo plano. Enquanto, antes, as pessoas interessadas em ouvir música ouviam canções defeituosas, de tipo alienatório, que lhes sugeriam coisas sem interesse, agora têm possibilidade de ouvir coisas diferentes. A cantiga de intervenção ganhou uma tal força que obrigou, hoje em dia, as pessoas que aparecem e se querem impor a utilizarem, pelo menos, um fraseado semelhante, embora vazio de conteúdo e de consequências.”
(Vieira da Silva, 1972)

Meu amigo cantava. Dizem que cantava. / E de repente quebraram-se nas veias os relógios onde / os ponteiros marcavam vinte e cinco anos...
“A canção é sempre de intervenção. Quer dizer, pode não ser uma canção de raiz panfletária, mas é sempre uma canção de intervenção, porque desde o momento em que se fala está-se, evidentemente, a dizer coisas, a intervir. Mesmo quando se trata de uma canção lírica, está-se a falar do amor, a tomar posição quanto ao amor, a intervir no âmbito do amor.”
(Carlos Mendes, 1979)

Não tenhas medo não trago / nem ódio nem espingardas / trago paz numa viola...
“O canto de intervenção procura trazer à tona uma série de problemas que nós achamos importantes. Uma canção é um concentrado e pretende dizer em pouco tempo uma série de coisas. A própria repetição da canção, por vezes, torna-se eficaz. Eu acho que o canto de intervenção não tem ou consegue um impacto de uma só vez; ao serem repetidas, seja na rádio ou por outros meios, elas adquirem outra dimensão, já que a sua assimilação completa se vai fazendo pouco a pouco, numa compreensão adquirida que as pessoas identificam com a situação real, que poderia passar despercebida anteriormente à sua audição. Isto tendo em conta que há vários tipos de canto de intervenção e que a chamada canção de circunstância é, de todas, a mais directa, contendo palavras de ordem alusivas a situações pontuais que as pessoas vivem em determinados locais.”
(Sérgio Godinho, 1977)

Eu canto para ti um mês onde começa a mágoa / e um coração poisado sobre a tua ausência / eu canto um mês com lágrimas...
“Sendo o canto de intervenção uma manifestação cultural, está, no entanto, ligado à luta de classes. Nós, os cantores, estamos ligados a essa luta, embora, por vezes, de uma forma subjectiva, e portanto passiva, face aos processos de transformação da sociedade. Mas, por outro lado, podemo-nos situar numa posição activa e é aí que eu vejo correcta a designação de canto de intervenção, isto é, ganha um sentido real: as pessoas não se limitam ao papel de testemunhas de uma realidade, mas intervêm nessa realidade através do canto, neste caso, sob a forma de agitação e propaganda, que se manifesta, na prática, numa transmissão de ideias e pensamentos.”
(Adriano Correia de Oliveira, 1977)

Quem poderá proibir os dedos farpas / que dentro da canção fazem das brisas / as armas harpas / que são precisas?
“Querermos intervir em determinada luta com uma canção que a possa reflectir, pode significar substituir o factor dominante que é a luta política e não a traduzirmos em termos exactos. A canção pode perfeitamente apreender o sentido dessa luta, mas também pode acontecer termos o problema de a exprimirmos ideologicamente, e até factualmente, de uma forma errada. O caminho que essa luta deve seguir deve ser definido pela classe operária, pelos trabalhadores e não por nós, pois poderia haver o risco de estarmos a cair numa situação falsa e induzirmos as outras pessoas em erro. No entanto, acho que a forma como se pôs o problema seria a forma da nossa intervenção.
(Adriano Correia de Oliveira, 1977)

E diz o inteligente / que acabaram as canções...
“A canção tem múltiplos papéis a desempenhar. A canção não é só uma canção implicada politicamente. A canção tem de ser também um puro divertimento para as pessoas. Pessoalmente, creio que devo continuar a fazer o tipo de canções que já desde há muito tempo faço, porque penso que, agora mais do que nunca, há muitas coisas a defender e há muitas coisas a dizer às pessoas.”
(Fernando Tordo, 1975)

E os hinos que cantei / foram frutos do meu coração / feitos de alegria e de paixão...
“Intervenção há sempre, pode ser consciente ou inconsciente, assumida ou não assumida. Está-se sempre a intervir, de uma forma ou de outra. Agora, há pessoas que assumem essa função, esse sentido, essa eficácia, e eu encontro-me entre elas. O papel da canção de intervenção está extremamente ligado aos aspectos visíveis da luta social, da evolução da sociedade em que se vive. A canção, para que se considere de vanguarda, é sempre um reflexo comum a todas as formas de expressão artística no meio onde é produzida. Constitui um reflexo daquilo que é o criador, da sua própria experiência de vida, do seu carácter.”
(José Mário Branco, 1974)

Mário Correia


  
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