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Os meus sapatos rotos...

Descobri há pouco, decorridos quatro anos sobre o meu subsídio de férias, que os meus sapatos estão rotos, de forma irremediável. Será que a minha dignidade como pessoa passa pelo facto de, nestes dias chuvosos, eu encharcar os pés, com algum desconforto, confesso, ou de esconder o frio que se entranha em dias de uma Primavera envergonhada como esta que vivemos? Claro que não, já que ninguém ousa perguntar (como estão os seus sapatos?) nem imaginar que, sobre estas solas roídas pelos dias, eu me pergunto sobre quantos não adormecem sob um cartão molhado, na berma, nessa berma onde resisto a não me confinar.

Descobri há pouco que os meus sapatos rotos já não são uma metáfora, como eu poderia ter a tentação de construir, que são, de facto, uns sapatos rotos, e que a metáfora é bem pior do que a minha imaginação ousaria noutra circunstância. A dignidade, essa, reside no facto de, à conta de uns sapatos rotos, literalmente rotos desde os quatro anos desse longínquo subsídio de férias, por honra de anos de serviço público, à conta destas solas desfeitas pela intempérie e pela minha atitude hirta, eu poder pagar ao Fisco, aos Bancos, ao Senhorio, à Escola, ao Hospital, ao Supermercado, e por aí fora...

Descobri que vou comemorar a Revolução dos Cravos calçando uns sapatos rotos, literalmente, sem complexos nem revolta, porque agora, sempre que calçar os meus sapatos, de facto rotos, vou sentir que faço parte do país que gostaria de ver justiçado, como eu seria se não tivesse, já amanhã, de voltar a calçar os sapatos que eu hoje descobri que estão rotos, depois dos quatro anos desse subsídio à dignidade que ninguém imaginaria eu ter que remendar com tal confissão; o meu problema agora, antes de todos vermos resolvidos os nossos, é o de poder reformar os sapatos rotos, literalmente rotos para minha vergonha, se isso tem algum significado...

Luís Vendeirinho


  
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