Perante a profusão de expressões alienígenas atamancadas num discurso em Português já de si ambíguo, ficamos muitas vezes sem fazer ideia do que significam. E mesmo sabendo, ficamos longe de ‘sentir’ o que valem emocionalmente.
O mundo tende a configurar-se como um mercado único, tecnologicamente avançado. A cultura corrente dominante centra-se, por um lado, na produção e comercialização de bens de consumo e na rentabilização de lucros e mais-valias e, por outro, no lazer e no entretenimento. Esta cultura hegemónica define-se por um registo do Inglês, sobretudo do Inglês americano, já que são os Estados Unidos os grandes impulsionadores do modelo cultural vigente. [“registo” é uma variedade linguística definida por determinados tópicos e contextos de uso e caracterizada por um léxico específico] Misto de tecnicismo e frivolidade, este registo do Inglês que de dia para dia se agiganta relaciona-se com grande parte das áreas de acção humana, da finança à moda e ao desporto, passando pela educação, a música e a política; ele invade o domínio público e o privado e engloba todos os estilos, do mais formal ao mais coloquial. O ‘financês’, o ‘politiquês’, o ‘economês’, o ‘eduquês’, o ‘juridiquês’, etc., são emanações desse registo, que melhor se designaria como macro-registo (matriz de todos os êses). O seu factor de consolidação e expansão são os media, omnipotente e uniformizador modelo de ditos e costumes. O quotidiano português já é norteado pela gestão por objectivos e pela avaliação do desempenho, pelas boas práticas do empreendedorismo, pela necessidade de competitividade e resiliência, pela busca de assertividade e auto-estima, pelo medo do abandono da nossa zona de conforto e pelo alívio proporcionado pelas técnicas de relaxamento, por exemplo. Em suma, arrastamos a vida sob doses maciças de aportuguesamentos do Inglês mercadista. Mais impressionante, ainda, é o facto de os nossos enunciados se apresentarem amiúde salpicados de palavras e expressões de Inglês mercadista e de tais empréstimos crescerem em proporções alarmantes. Usamo-los com alegre sujeição, mantendo-lhes a forma original (com algumas adaptações fonéticas). O mesmo quotidiano português enfrenta, inquieto, lay-offs e blackouts, ratings e rankings, benchmarks e (low) yields e grandes doses de outsourcing e outplacement. Enfim, o outlook é de generalizado downgrading e íntimo FOMO, apesar dos constantes esforços de self-branding. [FOMO é acrónimo de “fear of missing out”, o nosso velho e corriqueiro ter medo de não ser convidado para as festas]
Faz-de-conta. Perante a profusão de expressões alienígenas atamancadas num discurso em Português já de si ambíguo, ficamos muitas vezes sem fazer ideia do que significam. E mesmo sabendo, ficamos longe de sentir o que elas valem emocionalmente. Os políticos aproveitam-se logo disso. Não foi à toa que um ex-secretário de Estado da Administração Pública afirmou que era preciso “fazer o downsizing em termos de efetivos”. [Agência Lusa, 17.02.2012] Downsizing doura a amarga pílula que o equivalente vernáculo cruamente prescreveria. É certo que o uso da expressão “em termos de” também atrasa o impacto da ameaça, e até a palavra “efetivos” (na citação) distancia o drama, mas é downsizing que verdadeiramente faz o trabalho sujo com elegância e mistério. Os empréstimos do Inglês mercadista existem quase sempre como faz-de-conta. E isso interessa ao mercado, instância de enganos e ilusões. Em matéria de ilusões, a ‘inovadora’ palavra selfie bate talvez todas as outras, condensando em si a cultura comum. Selfie, cunhada desta feita em Inglês australiano, significa uma fotografia que tiramos a nós próprios, geralmente com as novas tecnologias, e imediatamente enviamos para o ciberespaço. Significativamente, a forma de selfie omite qualquer referência a fotografia, sequer a imagem. Refere apenas o ‘eu’ (self), acrescentando-lhe um diminutivo (ie), que torna esse ‘eu’ complacente, indulgente para consigo próprio – um euzinho, deliciado com a difusão virtual da cópia de si mesmo. Apareceu recentemente belfie (amálgama de butt+selfie), a aprimorar o conceito: o eu/ente consubstancia-se, afinal, na projecção virtual do seu próprio reverso. Excelente metáfora para o que vai acontecendo à língua natural, essência do Homem, nesta cultura de mercado tecnologicamente avançado.
Ana Laura Metelo Valadares
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