Desde o final de 2013, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) tem estado nas parangonas da comunicação social. Infelizmente, pelas piores razões.
Desde a sua criação, em 1995, na governação socialista de António Guterres, a FCT tem sido o principal motor do desenvolvimento científico de Portugal. E, enquanto tal, assumiu o papel de principal agente impulsionador e de financiamento da Ciência e do desenvolvimento tecnológico, acumulando um capital de prestígio e uma imagem de modernidade e inovação que serviu, inclusivamente, de modelo para toda a Administração Pública. Este papel foi reforçado quando, num raro exemplo de entendimento político, a governação de Durão Barroso uniu o Ministério da Ciência e Tecnologia com a Secretaria de Estado do Ensino Superior, até então no Ministério da Educação. Nos mandatos de José Sócrates, esta orgânica manteve-se inalterada. Na verdade, no seu governo, a dotação financeira da FCT foi reforçada e, por um breve intervalo, Portugal pode ombrear, em termos científicos, com os seus parceiros comunitários, apesar da inferioridade financeira. Os resultados foram notáveis em vários domínios do conhecimento e Portugal passou a ser membro ativo e respeitado em várias organizações científicas internacionais de que faz parte, tais como o ESO (European Southern Observatory), o CERN (European Research Center for Particle Physics), a ESA (European Space Agency) e o EMBL (European Molecular Biology Laboratory), para citar as mais significativas em termos de investimentos.
Um governo sem estratégia nem objetivos para a ciência e a tecnologia. Mas o espírito revolucionário e destrutivo da atual governação não podia deixar intacta a FCT, uma fundação que só faz sentido enquanto instrumento do Estado para financiar e impulsionar a Ciência e a Tecnologia. Se, por algum tempo, os ventos de mudança só se fizeram sentir através de uma alteração retórica que colocava a tónica na necessidade de redirecionar a oferta científica, de modo a torná-la mais próxima da investigação de cunho tecnológico e aplicado, a situação alterou-se substancialmente com a recente divulgação dos resultados dos concursos de posições de investigador da FCT, bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento. Foi com a divulgação dos resultados destes concursos que se percebeu que o Governo não tem qualquer estratégia nem objetivos para a Ciência e a Tecnologia, que não entende a imperiosa necessidade de consistência e estabilidade que o sistema científico exige para o seu bom funcionamento e que não está interessado em criar um clima de colaboração e diálogo com a comunidade científica. Tristemente, o que se viu foi uma curiosa mistura de um discurso vazio e confuso sobre a excelência (um lugar comum no meio científico, que pela sua natureza é altamente qualificado e competitivo), afirmações surreais acerca do sobredimensionamento da oferta até então existente e uma chocante insensibilidade para o facto de ficarem mais de um milhar de cientistas e investigadores sem emprego e de estudantes de doutoramento e aspirantes a esta formação sem qualquer resposta às suas legítimas aspirações de formação e para o seu futuro. Desnecessário será dizer que este estrangulamento implica um desperdício incalculável dos recursos que foram afetados à formação e à investigação que eram desenvolvidas e levadas a cabo por estes quadros qualificados. Exigia-se, também, algum planeamento que minimizasse o impacto destes cortes indiscriminados na vida das pessoas envolvidas e na sua investigação.
A dimensão dos cortes nas bolsas e a ausência de critérios objetivos nos concursos. Para se ter uma ideia do que se está a discutir, mencionemos que no concurso para posições de investigador da FCT, cujo resultado foi tornado público em dezembro de 2013, houve 1.497 candidaturas e só 210 posições atribuídas; nos concursos de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, houve 3.416 e 2.305 candidatos, respetivamente, sendo atribuídas apenas 298 e 233 bolsas. Cortes brutais, que, em termos de atribuições de bolsas, representam um retrocesso de cerca de duas décadas. A este estrangulamento acrescem os sucessivos cortes de investimento na Educação e nas universidades, que assim não têm qualquer hipótese de absorver cientistas qualificados e responder positivamente à evolução da qualificação da comunidade científica nacional. Ao mesmo tempo que se propala que não houve um desinvestimento significativo em Ciência e Tecnologia, ouve-se também o argumento de que o país não tem verbas para manter este nível de despesas nesta área. A contradição é mais do que evidente, e o que se impõe é uma clarificação cabal sobre a matéria; caso se verifique que não há desinvestimento, então todos merecemos uma explicação. Como estão sendo cativadas as verbas antes destinadas à formação e à contratação de mão de obra especializada? Planeia o Governo criar um cheque-investigação? Estarão a ser desviadas as dotações para a contratação e a formação de cientistas para empresas e instituições privadas que alegam desenvolver investigação? Com que critérios e objetivos? Penso que o país merece um esclarecimento abrangente e que os cidadãos e a comunidade científica têm o direito de participar ativamente nesta discussão. Outro aspeto a realçar é que o processo de receção, avaliação e seleção dos candidatos mais qualificados para os concursos em questão estão eivados de irregularidades de toda a espécie: há candidatos com a mesma experiência, com o mesmo desempenho bibliográfico e na mesma área de investigação aos quais é atribuída, respetivamente, a nota máxima e uma nota muito abaixo do limiar mínimo de atribuição de bolsa, tudo por conta de impressões subjetivas e casuístas emitidas por um dos avaliadores, mesmo quando em contradição com a opinião de dois outros. Enfim, salta à vista a ausência de critérios sérios e objetivos e, sobretudo, a falta de preocupação para se chegar a um consenso alargado relativamente aos propósitos e objetivos de um processo de avaliação que se deve pautar, necessariamente, pelo interesse de dotar a comunidade científica com os mais ativos e com o maior número possível de investigadores.
É fundamental que a FCT recupere a credibilidade. Tendo em vista os resultados deste conturbado e contestado processo, é fundamental que a FCT recupere a credibilidade perdida e inicie um processo de discussão com a comunidade científica, de modo a mitigar o prejuízo causado e encontrar uma estratégia na qual a comunidade científica se reveja minimamente. É fundamental que a FCT seja capaz de se afirmar como componente incontestável do sistema científico nacional e não como uma correia de transmissão das políticas em curso dos governos do momento. Finalmente, parece-me óbvio que a FCT deve funcionar em estreita colaboração com as universidades e outras instituições científicas, de modo a aumentar o emprego científico em Portugal. Seria também desejável que a FCT pudesse estudar formas de estabilizar a sua dotação orçamental, indexando-a a uma fração fixa de algum imposto – neste sentido, era importante que a Fundação, em articulação com os ministérios da Economia e das Finanças, criasse um conjunto de regras que permitissem às empresas que contratam doutores e que desenvolvem investigação gozarem de uma diminuição nas contribuições do IRC ou de outras formas de benefício fiscal.
Orfeu Bertolami
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