Nunca tinham feito qualquer reparo sobre o modo como ia trabalhando. Por isso, foi quase inacreditável quando se deu conta de como o seu investimento tinha sido invasivo, ameaçador, e como a sua conceção de aprendizagem era uma linguagem que ninguém falava.
Eu não estava a perceber, quando uma das colegas, professora do 1º Ciclo como eu, dizia, exaltada, que “isto não pode voltar a acontecer”, que “isto foi um acidente, mas um acidente que nunca mais se repetirá”. Só se nós deixássemos... – Mas que acidente foi esse? – perguntei. – O que aconteceu com a Marta nestes últimos três anos... Imagina que chega cá, fica com uma turma de 1º ano e começa a fazer coisas... Como se estivesse em estágio, sei lá... Achámos logo esquisito: era vê-la, a porta da sala aberta, os meninos à volta das mesas em grupinhos e ela para ali, a cirandar ou sentada no meio deles, as paredes da sala cobertas de desenhos dos meninos, fotografias e outras coisas... E até os ouvíamos rir, e ela com eles... – Mas qual é o problema? – Qual é o problema?! Não vês como ela os habituou? Agora ficaram a pensar que estar na escola, aprender, é uma coisa divertida; sempre a entrarem em projetos, a ganharem prémios, a saberem coisas que nem eram para a idade deles... Até havia alunos que andavam a ler o “Diário de Anne Frank”, miúdos na terceira classe, imagina! E poesia?! Algum dia tivemos tempo para trabalhar poesia?! Escreviam poemas, liam poemas, falavam de diários, sei lá que mais. – Mas então sabiam ler e decerto escrever e contar! – Isso não interessa! Por que é que ela não se cingiu ao que estava previsto? Ler, escrever e contar disse o ministro, e eu acho muito bem. E até lhes deu poesia, entrava em todos os concursos da biblioteca, ia a palestras com eles e o que mais aparecesse... Aliás, andou o ano todo nisso de projetos, e os alunos até falavam de coisas que não vêm no programa... – É verdade! – acrescentou outra professora – Uma vez entrei na sala dela e estava a falar sobre a guerra colonial. E o que têm os alunos que saber sobre a guerra colonial? É verdade, a Marta habituou-os mal! Eles não sabem que aprender custa, que não é uma festa... – Mas a Marta deixou um trabalho interessante – disse eu. – O que a Marta nos deixou não foi uma herança, foi um pesadelo – acentuou outra professora. – Ainda bem que ela não foi contratada este ano. Assim, aqueles meninos vão ficar a saber o que é estar na escola... – A Marta foi um acidente, mas um acidente que não se voltará a repetir. No fim do ano letivo, Marta tinha assistido à reunião do 1º Ciclo, de encerramento e de análise de algumas propostas para o próximo ano. Assistia mais do que participava. Era professora contratada e tinha acabado de saber que não ficaria colocada na escola onde estava. E quem saberia se numa outra? Além de se sentir particularmente angustiada com o que o futuro lhe reservava, estava profundamente triste: ia deixar os seus alunos, que tinham iniciado com ela o primeiro ano. Tinham percorrido juntos os três últimos anos e Marta tinha consciência do profundo elo que se tinha desenvolvido entre todos. Tinham participado em projetos, tinham escrito histórias coletivas, tinham feito uma horta, tinham preparado o estudo de um livro para participar num debate com um escritor, tinham feito cartazes cheios de entusiasmo, tinham preparado escrita coletiva e individual de histórias e poemas, tinham vivido com paixão o mundo da escola e descoberto sonhos e aprendizagens. A escola não tinha hábito de trabalho coletivo. Por isso, ainda que pusesse à disposição dos colegas os seus materiais, Marta cavalgava solitária, mas cheia de entusiasmo, por entre planificações, improvisos, descobertas e inovações que teceram como trama densa a relação com os alunos e destes com a atividade escolar. Nunca nenhum dos colegas tinha feito qualquer reparo sobre o modo como ela ia trabalhando. Por isso, foi quase inacreditável quando, nessa reunião, se deu conta de como o seu investimento tinha sido sentido como invasivo, ameaçador, e como a sua conceção de aprendizagem era uma outra linguagem que ninguém falava.
Angelina Carvalho
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