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As sonoridades das máscaras

A presença diferenciada das sonoridades musicais nas festas tradicionais com máscaras do Nordeste Transmontano integra distintos rituais e assume diversas funções.

As festas tradicionais conheceram distintas e diferenciadas modificações e alterações ao longo dos tempos, não raro tendo mesmo perdido os significados originais ou, pelo menos, como tal considerados.
Por força de um complexo processo de (re)invenção ao longo dos tempos, as festas tradicionais foram acumulando traços e características, significados e simbologias resultantes da sobreposição de patrimónios temporais, de tal modo que os estudiosos divergem nas suas análises quando procuram refletir sobre os seus fundamentos expressivos.
No que se refere à presença, ou não, das sonoridades musicais nas festas tradicionais com máscaras, tendo por base a documentação conhecida e disponível, bem como alguns estilos prospetivos, podemos considerar o seguinte quadro de possibilidades:
- festas que nunca tiveram como elemento integrante das mesmas as sonoridades musicais;
- festas que integraram no seu corpus expressivo as sonoridades musicais, mas que as perderam no decurso dos tempos;
- festas que se apresentam ainda com expressões de sonoridades musicais, mas de forma fragmentada ou com notória perda de significado ou importância ritual e funcional;
- festas que se apresentam com sonoridades musicais que constituem parte integrante e indissociável dos respetivos rituais.
Foram, naturalmente, muitos e diversificados os motivos e razões que determinaram e, porventura, continuam a determinar, esta tipologia, quer de natureza externa (proibições dos poderes políticos e/ou religiosos, alterações das condições de vida das respetivas comunidades suscetíveis de provocar alterações na estrutura expressiva e ritual das festas, contextos históricos e sociais interferentes com a realização das festas, etc.), quer de natureza interna (perda de significado social para as comunidades, desadequação a realidades e contextos em mudança).

RITUAIS. Na vertente que nos interessa – a presença das sonoridades musicais nas festas tradicionais com máscaras – constatamos que, no que se refere à sua permanência expressiva, elas se inscrevem nas seguintes atividades integrantes da festa:
- rituais religiosos: com uma presença regular em procissões e de certo modo circunstancial em momentos litúrgicos; neste contexto de participação, importará ter em consideração as sistemáticas proibições e interdições dimanadas sobretudo das autoridades eclesiásticas (apesar da reconhecida resistência popular, singularmente atestada pelas sucessivas pastorais dos bispos reiterando anteriores proibições e interdições), que muito contribuíram para a efetiva redução ou mesmo supressão das sonoridades musicais nos rituais religiosos;
- rituais lúdicos: constata-se a presença de sonoridades musicais nas rondas e passacalhes de visita/oferta ou de peditório, bem como nas danças integrantes dos bailes tradicionais que, com frequência, integram as atividades das festas tradicionais com máscaras, sendo ainda de referir a sua presença em torno das fogueiras rituais ou durante algumas evoluções ou representações dos mascarados;
- rituais gastronómicos: do mesmo modo se regista a presença das sonoridades musicais nos momentos consagrados às refeições comunitárias ou aos banquetes rituais das mordomias e figurantes.

CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES. As reflexões sobre a presença diferenciada das sonoridades musicais nos distintos rituais integrantes das festas tradicionais com máscaras permitem-nos passar em análise as suas características e funções, desde logo se impondo uma primeira abordagem a todo o conjunto de sonoridades integrantes destas festas.
Se até agora falamos apenas das sonoridades musicais, tal não significa que, no contexto significante e expressivo da festa, as sonoridades não musicais não tenham importância, não raro sendo elementos do mesmo modo relevantes e indispensáveis. De facto, mais adequado do que falar de música ou das sonoridades musicais das festas tradicionais com máscaras será partir-se do conceito de “paisagem sonora”, que se revela bem mais abrangente e expressivo da totalidade ambiental da festa.
Tanto mais que, não raro, se regista uma coexistência de distintas sonoridades que não faz sentido analisar em separado ou dissociar do contexto em que se inscrevem e da função que desempenham.
Assim, tendo em consideração a existência integradora e significante de uma tal “paisagem sonora” – e tendo como referente a definição avançada pelo etnomusicólogo John Blacking, considerando que “a música é o som humanamente organizado” –, as sonoridades das festas tradicionais com máscaras podem agrupar-se em dois núcleos fundamentais: sonoridades não musicais e sonoridades musicais.
No que se refere às sonoridades não musicais, importará, sobretudo, referenciar aquelas que, no contexto das festas tradicionais com máscaras, são as mais comuns, o que pode ser facilmente constatado quer por observação direta quer através da simples leitura de relatos descritivos:
- chocalhadas: abundam as referências sobre a presença de chocalhos, sinetas, campainhas e afins, usados à cinta ou a tiracolo pelos figurantes e protagonistas (o que desde logo nos remete para um contexto rural e pastoril), constituindo as sonoridades produzidas elementos indispensáveis nas representações rituais lúdicas;
- gritos, urros e clamores: surgem frequentemente referenciados, normalmente preferidos pelas figuras e protagonistas mascarados durante as suas evoluções e corridas ou correrias (não correndo, desse modo, o risco de serem identificados pela voz);
- ruídos diversos: obtidos mediante o recurso e utilização de distintos objetos sonoros, como paus e varapaus, bexigas de porco insufladas e outros de uso utilitário ou doméstico.
De um modo geral, as sonoridades não musicais estão ou fazem-se ouvir associadas às vertentes de transgressão e de inversão das festas e normalmente não interferem com as chamadas sonoridades musicais, mesmo quando se integram nos mesmos atos rituais com idênticas finalidades.
No que se refere às sonoridades musicais, numa primeira análise constata-se que, de um modo geral, não existem repertórios específicos da festa, o que não exclui a existência de um ou de outro espécime funcionalmente associado com caráter de exclusividade (que pode ser um toque concreto de alvorada, uma determinada marcha de ronda ou uma certa dança). Esta constatação sugere-nos de imediato uma reflexão que requer investigação: terá existido um repertório específico para estas ou para algumas das festas tradicionais com máscaras?

REPERTÓRIOS. Se aceitarmos que “a função da música é a de reforçar certas experiências que se tornaram significativas para a vida social, vinculando estreitamente as pessoas com elas” (Blacking), somos forçados a admitir que sendo a experiência da festa particular e especialmente significativa para uma determinada comunidade, fará todo o sentido aceitar a existência de repertórios criados para reforçar tal experiência ou vivência.
Regista-se um nexo de funcionalidade, sem dúvida, mas com repertórios associados a todas as festas e não a uma festa em concreto, muito menos uma festa tradicional com máscaras.
Sabemos que, por exemplo, os repertórios aprendidos a assimilados pelos gaiteiros tradicionais (cor)respondem a distintas exigências funcionais, permitindo-lhes contribuir, nos contextos e nas ocasiões festivas tradicionais, para a permanência expressiva de um vasto e significativo conjunto de atos rituais (alvoradas das festas, rondas de ofertório e de peditório, bailes nos terreiros e animações relacionadas com refeições comunitárias), de tal modo que, sem sua presença, tais atos careceriam de sentido e de significado.
No entanto, esta simples constatação não nos permite avançar com conclusões definitivas (se é que tal pode ser possível, ou desejável, no campo do conhecimento em que nos movemos, enfrentando uma enorme e possivelmente incontornável escassez de fontes documentais). A possível existência (e perda) de repertórios específicos associada ao facto de hoje os repertórios serem não específicos, na sua esmagadora maioria, não nos permite, com legitimidade, concluir que os mesmos não fossem uma parte muito importante do ritual, mas sim que o mesmo se encontra em processo de desagregação, fragmentando-se a sua totalidade expressiva, com perda dos seus elementos mais especializados.
O que sabemos é que a presença das sonoridades musicais é indispensável: sem música, a esmagadora maioria das festas não se realizariam.

FUNÇÃO RITUAL DA MÚSICA. De facto, no contexto expressivo das festas tradicionais com máscaras (por exemplo, no Nordeste Transmontano), de imediato se pode verificar que a música desempenha uma função ritual reconhecidamente indispensável.
Refira-se, a título de exemplo, que nas áreas raianas em que se realizam as festas com a participação de personagens mascaradas dispomos de notícias sobre a contratação de músicos populares (normalmente gaiteiros e respetivos acompanhantes nas percussões), com frequência em terras leonesas e castelhanas, quando os mesmos não estavam disponíveis nas comunidades em que as mesmas deveriam ter lugar. Bem como informações sobre a suspensão (temporária, na maior parte dos casos) de festas por falta de quem assegurasse as respetivas funções musicais.
Em boa verdade, sem os gaiteiros, a festa não podia realizar-se, na medida em que muitos dos ritos integrantes da mesma perderiam o sentido e o significado pretendido e requerido.
No que se refere aos instrumentos utilizados para a produção das ditas sonoridades musicais das festas tradicionais com máscaras, o respetivo leque organológico não difere do que é utilizado noutros contextos e ocasiões festivas ou lúdicas: aerofones (gaitas-de-foles, flautas, dulçainas); membranofones (pandeiretas, bombos, tamboris, caixas, tambores); idiofones (castanholas, trancanholas, triângulos).
Quanto à sua natureza funcional e distribuição pelos tempos da festa, as sonoridades musicais podem ser agrupadas nos seguintes termos:
- de rondas ou passacalhes e de bailes: normalmente associadas aos rituais lúdicos de visita/oferta e de peditório (nestes, por vezes, associadas a danças), eventualmente antecedidas por toques de aviso e de comunicação (alvoradas), bem como aos bailes comunitários, assumindo claramente no contexto da “paisagem sonora” global da festa uma função socializadora centrípeta, propiciando e promovendo a reunião e a coesão social;
- de canto e/ou recitação: frequentemente associadas a momentos de crítica social, com recitações que nos devolvem para a musicalidade específica do chamado teatro popular;
- de rituais religiosos: integrando-se em atos ou momentos litúrgicos e nas procissões com espécimes específicos, mas geralmente não exclusivos.

FUNÇÃO REGULADORA E DISCIPLINADORA. A festa constitui um fator de revalidação anual do corpo social e coletivo e a música assegura uma paisagem sonora tão diversificada (toques de andar, toques de bailar, toques de convívio e de reunião...) como insubstituível.
De facto, os músicos e instrumentistas (gaiteiros, tamborileiros e percussionistas), assim como os dançadores e bailadores (pauliteiros, sobretudo), são elementos funcionais catalisadores e potenciadores do rito. Tanto mais que a rutura com a racionalidade do quotidiano, a transgressão que perpassa e caracteriza normalmente as festas de mascarados, nunca interfere com a função primordial da música: na verdade, esta nunca integra o corpus da transgressão e o caos organizado, estando-lhe reservada uma função reguladora e disciplinadora.
No contexto de inversão que normalmente caracteriza as festas com máscaras, a música (e a dança, quando existe) desempenha um papel regenerador da ordem, constitui um elemento de racionalidade, nunca deixando de assumir essa função primordial de agregação e de ordenação (sobretudo evidente nas rondas de ofertório e/ou de peditório). E esta função acompanha praticamente todos os momentos fundamentais da representação social da festa, que decorre num espaço múltiplo: casas dos mordomos e/ou dos rapazes/moços, ruas e terreiros das comunidades onde se realizam, locais de reunião e/ou de divertimento público coletivo e templos religiosos (missas e procissões).
Afirmou Caro Baroja que “a festa só pode ser compreendidas dentro do contexto sociocultural da sua origem”. Quando efetuamos uma análise e consequente reflexão sobre as respetivas sonoridades, é nesse contexto primordial e essencial que enquadramos as características principais das festas tradicionais com máscaras que ainda se realizam no Nordeste Transmontano – a festa assume sempre um caráter de exceção e de transgressão; opõe-se ao quotidiano rotineiro e cíclico; tem como referente fundamental um mito do passado, remetendo para uma memória de origens; ritualiza e soleniza o tempo e o espaço em que decorre.
Do mesmo modo, a análise a caracterização dessas sonoridades nunca pode perder de horizonte a festa como celebração.

Mário Correia


  
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