Sendo a escrita, como eu a entendo, um trabalho de artesão, ela não pode senão expressar uma consciência mais ampla e lúcida que está, justamente, nos antípodas da alienação. O que não podemos em qualquer caso evitar é que a escrita deixe de ser um testemunho para outros. Almerindo Janela Afonso
O exercício de escrita pública constitui uma prática de cidadania por excelência, representando, na verdade, um imperativo social incontornável para quem, como os intelectuais, se encontra em posição de produzir discursos informados e fundamentados. Este poder de inscrição pública é, no entanto, indissociável da adoção de padrões de responsabilidade ética especialmente exigentes. Respondendo por espaços de autoridade científica e académica muito próprios, os intelectuais não podem circunscrever-se à condição de “operários especializados do conhecimento”, como não podem comportar-se como meros “opinadores profissionais” que, sem nunca desconfiarem do que escrevem, julgam produzir ou induzir verdades válidas apenas para os outros, como nos afirma Almerindo Janela Afonso, o autor de Fragmentos de Escrita Pública e um dos colaboradores mais lúcidos, intervenientes e assíduos d’a Página da Educação. Abrangendo questões fundamentais respeitantes à organização dos sistemas educativos, às lógicas de governação, de avaliação e de responsabilização, à dinâmica pedagógica das escolas, à profissionalidade docente e aos novos desafios vindos do campo da educação não-formal e informal, esta obra reúne o conjunto de crónicas e de entrevistas publicadas na PÁGINA durante a última década (2002-2012), revelando, justamente, os traços de exigência intelectual que constituem a marca distintiva do autor. Para além da pertinência das análises feitas e da sua desconcertante atualidade, assume particular evidência a articulação eficaz entre os temas de política educacional, desenvolvidos no âmbito de uma produção académica singularmente relevante, e as preocupações concretas emergentes dos contextos de ação, dando assim origem a um discurso lógico, ainda que marcado pelo vivido e, nessa medida, aberto a uma pluralidade de razões à partida estranhas à razão. Tal como nos é dito, um exercício de escrita deste tipo implica sempre uma certa dose de sofrimento reflexivo, acompanhada por vezes de um inevitável desencanto. Mas a verdade é que, mesmo quando se confessa especialmente melancólico, como, por exemplo, ao evocar o obscurecimento dos lugares de afirmação democrática associados aos valores de Abril, o autor nunca perde o sentido de futuro que está na base do seu compromisso pessoal, profissional e cívico. E é justamente nesta linha de continuidade entre investigação, docência e vida que encontramos os traços de caráter que ajudam a explicar a coerência interna de uma obra onde o autor fez questão de manter as versões originais dos textos e de os apresentar por ordem cronológica. O termo “fragmentos”, que ilustra o título, remete-nos, desde logo, para uma realidade textual mais ampla e dialogante com outras autorias. Destacamos assim outra das preocupações recorrentes do autor e que se prende com a qualidade da produção científica num quadro de verdadeiras “comunidades interpretativas”, neste caso referentes ao campo das ciências da educação. Mas a verdade é que os intelectuais só podem efetivar os seus deveres de inscrição pública se, por outro lado, puderem contar com a existência de espaços de escrita capazes de acolher os seus testemunhos de reflexividade cívica. A PÁGINA ocupa neste sentido uma posição fundamental no panorama editorial português, tendo vindo a afirmar-se como um lugar de expressão responsável, livre e plural, primeiro como jornal, depois como revista, e agora também através de uma coleção própria, destinada, precisamente, a ampliar e a prolongar o espaço de intervenção dos nossos colaboradores. Esta obra, intencionalmente publicada no ano em que a PÁGINA comemora o seu vigésimo aniversário, reflete bem a originalidade e a força do nosso compromisso público. Almerindo Janela Afonso oferece-nos, de facto, páginas belíssimas de esperança, de responsabilidade e de liberdade.
Isabel Baptista
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