Apresentadas como um mal absolutamente necessário e justificadas no quadro de uma racionalidade económico-financeira implacável, as situações de empobrecimento, de privação e de injustiça social acentuam-se de dia para dia na nossa sociedade, causando sofrimento, minando vontades e obscurecendo utopias. Neste contexto, a noção de bem público, por exemplo, tende a ser substituída pela noção de “interesse geral”, um interesse valorizado enquanto “soma” dos interesses particulares e que, de acordo com o discurso político dominante, requer uma gestão tecnicamente apurada. Ou seja, é em nome de valores essencialmente individualistas e prepotentes que vingam hoje lógicas de poder agressivas para os cidadãos e para a cidadania, evidenciando o predomínio de visões utilitaristas e meramente administrativas de sociedade e de vida política. E de tal forma que o esforço de construção de alternativas democráticas deverá passar, imperiosamente, por uma discussão de fundo sobre os modelos antropológicos predominantes. Onde reside, afinal, o sentido de solidariedade que subjaz ao compromisso ético-político do nosso tempo? O que é que liga os seres humanos entre si? O laço social é um laço circunstancial e puramente contratual ou, pelo contrário, é um laço constitutivo e estruturante da condição humana? Estou convencida de que o tipo de resposta que soubermos dar a este tipo de questões fará toda a diferença. Conforme nos lembra recorrentemente François Flahault, os conhecimentos antropológicos desenvolvidos nas últimas décadas permitem-nos pensar para lá das dicotomias tradicionais, apontando para modelos de humanismo relacional alicerçados no reconhecimento da solidariedade enquanto traço definidor e estruturante da condição humana. Admitir que a humanidade resulta de milhares de anos de vida social significa perceber que o que permite a cada pessoa realizar-se, concretizando um projeto de vida individual, não depende apenas de si mesma mas também, e principalmente, das relações que estabelece com os outros. O ser humano é um ser eminentemente relacional, razão pela qual, antes de poder ser olhada pelo ângulo moral, a questão do laço social deve ser valorizada como uma questão antropológica elementar e, nessa medida, como uma questão política por excelência. Não basta ter consciência da importância dos outros e ser sensível ao seu sofrimento, é necessário que nos sintamos ligados a eles por um sentimento de afiliação essencial, um sentimento que transcende a vinculação afetiva ou qualquer tipo de afinidade circunstancial. O individualismo autoritário tende muitas vezes a conviver com manifestações de um individualismo compassivo e filantrópico, especialmente frequentes em tempos de urgência social. No entanto, ainda que bem-intencionado, o individualismo benevolente continua prisioneiro de conceções egológicas incompatíveis com as novas exigências de cidadania. A ajuda social gerada por esta espécie de individualismo não produz relações de reciprocidade, não chama para a verdadeira solidariedade. Pelo contrário, pode até contribuir para reforçar as linhas de separação interpessoal e de desafiliação social. Por esta razão também, a reflexão de carácter antropológico não pode ser adiada ou hipotecada em nome da resposta imprescindível aos apelos de pronto-socorro social, ou seja, justamente quando mais precisamos dela. Importa, pois, promover um debate amplo e aprofundado em torno de questões antropológicas cruciais como as que se referem ao ideal de humanidade que desejamos perseguir, investindo a vida pública de uma intencionalidade cívica capaz de animar vontades e de mobilizar utopias.
Isabel Batista
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