Urge pensar novos modelos de democracia e de intervenção democrática. Urge mudar ou ampliar as formas de contestação e protesto. Urge uma mudança constitucional do sistema político e governativo.
Nos últimos anos, diversos movimentos de protesto e indignação espalharam-se pelo mundo, reclamando por uma Democracia mais participada e ensaiando formas de melhoramento do modelo de democracia representativa vigente na maioria dos países. A história desta indignação cívica terá, certamente, muitas formas de ser contada, mas creio que se poderá concordar com a sua ligação ao momento crítico da chamada “crise financeira do capitalismo”, espoletada em 2000, nos Estados Unidos da América, e que teve o seu apogeu em 2008, na Europa. Este crash económico reativou o espetro da crise mundial de 1929 e as narrativas sobre a inevitabilidade de uma “crise” à escala global tornaram-se o discurso central de Estados, políticos, agentes económicos, media e senso comum. Todavia, como alguns disseram, a crise era já para muitos a “vida normal de todos os dias”, o que mudou, talvez, foi que o discurso otimista do progresso e da expansão do capitalismo não se sustenta mais, e a partir desse momento encontrou na “crise” a razão para medidas de austeridade e de intervenção no bem estar comum. Em pouco tempo, esta narrativa hegemónica da “crise” sustentou intervenções à escala global nos mercados, na soberania dos Estados, nas legislações nacionais que regiam o chamado “Estado Social”, na repressão e no aumento de vigilância sobre mobilidade e circulação de pessoas, e, finalmente, nos direitos laborais e cívicos dos cidadãos e cidadãs. A recente intervenção do Fundo Monetário Internacional, da União Europeia e do Banco Central Europeu em alguns países é apenas uma réplica deste terramoto económico que é a crise do capitalismo contemporâneo. Mas mais do que concentrarmo-nos nesta trágica história, que terá certamente inúmeras leituras e perspetivas, importa perguntarmo-nos o que poderemos fazer para além deste deprimente nevoeiro da crise. E aqui chegamos ao movimento de indignação que atravessa países e que resulta da perceção de que, enquanto cidadãos e cidadãs, estamos apenas a suportar os efeitos desta crise e a perceber que a nossa capacidade de discussão e de ação está altamente limitada nos termos atuais de gestão democrática. Uma das ideias que decorre de práticas assumidas como normais e que importa repensar é a da eficácia dos sistemas políticos e de representação da vontade e da soberania popular, vulgo democracia. E aqui é absolutamente evidente que o atual sistema eleitoral de representação democrática não está a cumprir o ideal fundamental que o criou: representar a vontade do Povo. Este incumprimento decorre de múltiplas razões, que vão da corrupção à incompetência governativa e finalmente até à incapacidade de gestão da soberania nacional – já que cada vez mais as decisões de cada Estado dependem de equilíbrios, requisitos e decisões externas. Afinal, a “crise” e o modelo dominante de expansão capitalista das últimas décadas implicaram uma drástica redução da capacidade de intervenção dos Estados, dos agentes e órgãos de governação e legislação e, portanto, uma menorização acentuada da capacidade dos representantes eleitos em cada país para gerirem a coisa pública, o bem público, e de exercerem a governação democrática para a qual teriam sido eleitos. Em suma, uma democracia menor. E cada vez mais emerge a convicção de que queremos ser votantes emancipados, que podem e devem – como sugerem as diversas constituições nacionais – ser representados por eleitos que acolham e reflitam as aspirações de quem representam; mas também, e sobretudo, que é urgente mudar o sistema de acesso à gestão democrática em todos os níveis da governação, criando modalidades de gestão local mais próxima das vontades e dos problemas das populações. À indignação segue-se, portanto, a emancipação. É disso que se fala quando se exige mais democracia, Democracia verdadeira já! Mas para que a Democracia cresça urge mudar práticas que nos habituámos comodamente e confortavelmente a aceitar nos últimos anos. Boaventura Sousa Santos comentava que apenas duas gerações de portugueses viveram sob o chamado Estado democrático, que lhes prometeu muito e que agora, em nome da “crise”, lhes retira partes fundamentais dessas conquistas. A revolução democrática instaurou-se depois de anos de luta antifascista; partidos e movimentos sindicais e associativos criaram-se para mudar a governação e o exercício de cidadania. Todavia, este modelo tem-se revelado cada vez mais incapaz de representar os legítimos direitos e aspirações dos cidadãos e cidadãs. Na verdade, o modelo político-partidário tornou-se prisioneiro das suas próprias armadilhas e defeitos: generalização da corrupção e da imunidade de políticos, movido por interesses pessoais ou lobbies, crescimento da burocratização e do distanciamento entre eleitos e eleitores, programas de governo reféns de agendas estratégicas partidárias ou por imposições supranacionais, incapacidade ou incompetência técnica substituindo fóruns especializados para analisar e agir sobre os problemas das sociedades. Obviamente, não é um retrato generalizado. Urge, então, pensar novos modelos de democracia e de intervenção democrática. Urge mudar ou ampliar as formas de contestação e protesto. Na verdade, como muitos têm sugerido, temos de começar a protestar mais, a usar até o voto de maneira mais criativa, a criar consensos, falar alto e protestar contra a imunidade e a prepotência, criar mais associações e movimentos cívicos, manifestarmo-nos pacificamente bloqueando vias de comunicação, instituições e espaços públicos, para expressar a nossa indignação e resistência. O voto não é mais, nestas circunstâncias, a única expressão democrática da nossa indignação. O voto só será a sua expressão quando decorrer de um sistema mais justo, mais dialogante e mais participado. Urge, portanto, uma mudança constitucional do sistema político e governativo a todos os níveis da gestão democrática e da soberania nacional e transnacional. Mas é urgente que a indignação seja à escala internacional. Temos de saber que milhares de gregos, espanhóis, italianos, europeus, se manifestam em dezenas de cidades, mantendo assembleias regulares, protestos e ações de resistência à ganância da banca, às medidas austeritárias, às políticas do facto consumado com que governos e parlamentos têm vindo a condenar a vida dos seus concidadãos. A informação e a articulação destes movimentos sociais é portanto vital, não apenas pelas eventuais manipulações e censuras mediáticas, mas porque é necessário criar uma plataforma informativa e de protesto comum e à escala internacional. Impõe-se um novo tratado europeu que permita repensar todo o destino da Europa, cada vez mais navegando sem rumo nestas águas perigosas de um neoliberalismo selvagem, ameaçando-nos a todos com um naufrágio coletivo anunciado, mas sobretudo que permita estimular uma melhor democracia e novas formas de participação democrática, nas escolas e universidades, nos bairros e locais de trabalho, nas associações e coletivos dos países, e na internet. Um tratado europeu que seja efetivamente sufragado pelos povos, depois de discutido por todos e todas. De outra forma, a cidadania plena, a participação democrática e a solidariedade internacional serão sufocadas neste verdadeiro tsunami neoliberal, deixando a Europa à deriva num barco a remos...
Paulo Raposo
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