Ser capaz de acompanhar a movimentação do sistema globalizado. Transformar o outro e a si mesmo numa busca constante por atualização científica e ético-moral. Esses são alguns dos desafios a serem enfrentados pelo educador hoje.
Nas incertezas da contemporaneidade, a convivência humana parece sugerir acordos relativos entre os homens nos diversos campos da vida. Se, ao invés disso, esses acordos fossem absolutos, seriam extinguidas as diferenças, as divergências e as diversidades. Contudo, um relativismo extremo também parece condenável, porque introduz uma irresponsabilidade, sempre substituindo um acordo por outro (P. Demo). Tal situação contribuiria apenas para uma inversão dos “poderes” entre os envolvidos. A nossa cultura (ainda) eurocêntrica tem clara dificuldade de se conceber apenas como “uma das muitas” existentes. Hoje, no entanto, busca-se questionar e/ou romper com esse olhar, porque, assim como na natureza, também na sociedade a diversidade é benéfica e representa riqueza. Nas escolas espalhadas pelo nosso País e pelo mundo, os traços fisionômicos de alunos e professores, além das diferentes práticas que lhes fazem sentido, revelam a beleza multicultural. Atualmente, o tema das identidades se apresenta com intensa necessidade de debate. Entretanto, há pouco tempo, a discussão permanecia como um objeto filosófico, tratado apenas no campo das “ideias”. Em recente trabalho, argumentamos que o termo “identidade” pode ser entendido “como um processo mutante de representação pessoal e coletiva, que permite ao indivíduo se definir de alguma forma – provisoriamente – com relação a um ‘eu’ ou a um ‘nós’, diferenciando-se do outro ou dos outros” (C.P. Vargas, A.F.B. Moreira). Ressaltamos ainda que, nas ciências sociais e humanas, o termo vem sendo vinculado a outras palavras, como nas expressões “identidade e diferença” (T.T. Silva) e “crise de identidades” (Z. Bauman). Mas o que realmente significam tais expressões nas contingências atuais? Como isso se reflete no trabalho docente e na escola do século 21? Vários fatores podem desencadear um processo de crise de identidade. Citamos alguns, como as múltiplas possibilidades que se abrem para os sujeitos; os impasses nas decisões; a imprevisibilidade do mercado de trabalho; os diferentes valores e crenças; e a dificuldade para categorizar o outro. Diante disso, questionamos: como o professor se comporta diante da heterogeneidade de seus alunos? Enfim, “quem” somos nós diante de tudo isso? Apoiar-se em padrões sociais (modernos) já estabelecidos para encontrar soluções parece não ser suficiente. Por outro lado, optar por mudanças intensas (pós-modernas) pode ser intimidador e envolver riscos. Sabe-se que a identidade de um indivíduo é o seu bem mais precioso, e que sua perda pode representar angústia e sofrimento (C. Dubar). Segundo uma vertente teórica dos Estudos Culturais, representada essencialmente por Stuart Hall, um novo tipo de mudança estrutural tem promovido transformações nas sociedades contemporâneas e isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão mudando também nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos “fixos”. Tais mudanças parecem ocorrer devido aos implacáveis efeitos da globalização que, obviamente, atingem diversos campos, como a política, a ciência, a economia, a religião e a educação. Considero que o termo globalização possui forte caráter polissêmico e pode também ser compreendido como um complexo de forças que, no fim do século 20, deslocou as identidades. O efeito disso manifesta-se por meio de uma crise no “eu” contemporâneo. O “eu” centrado do homem moderno e excessivamente racional, supostamente fixo e imutável, tende a se fragmentar, devido a um choque com as incertezas da atualidade. Surge aí um conflito entre as imposições de um passado tradicional – seja cultural, educacional, social, político, etc. –, e as vicissitudes de um cotidiano tenso, globalizado e multicultural, que, paradoxalmente, unifica e delimita determinados setores, áreas ou grupos. Esse paradoxo leva às seguintes consequências: à diminuição das identidades nacionais pela homogeneização cultural; ao reforço das identidades “locais” em grupos conservadores que resistem a tal tentativa de unificação; e à necessidade de formação de identidades híbridas em diversos campos e setores da vida (S. Hall). A situação de hibridismo identitário não é um fenômeno pontual e ocorre em várias instituições, como na escola, principalmente em nível profissional. Afinal, o trabalho condiciona a construção de identidades sociais e, por se modificar intensamente nos tempos de hoje, obriga os indivíduos a transformações identitárias delicadas (C. Dubar). Para o professor que está diante das questões multiculturais que envolvem seus diversos alunos, transformar-se e adaptar-se, isto é, lidar com a movimentação identitária, parece ser a “ordem” do momento.
Transformações
Ao considerar o trabalho docente, defendo a ideia de que, diante desse contexto, o professor deve ser um profissional que precisa ser híbrido. Deve acompanhar a movimentação do sistema globalizado (mutante) no qual está inserido. Além disso, deve ser um indivíduo capaz de contribuir para a transformação do outro e, acima de tudo, de se transformar, numa busca incessante por atualização científica e ético-moral. Sabemos que muitos valores mudaram com o passar dos anos. Entretanto, o professor precisa perceber e interpretar aquilo que deve ser mantido (por representar uma conquista da sociedade) e aquilo que deve mudar (por não ter acompanhado o processo de maturidade social). Isso deve ser a mola propulsora e equilibrante em meio aos avanços necessários. Nesse contexto, destaco as recentes argumentações de Ricardo Vieira, pesquisador português e doutor em antropologia da educação, a respeito da construção de identidades. Para ele, a construção de identidades constitui um processo complexo, dialético, uma (re)construção permanente, flexível e dinâmica. Essa (re)construção da identidade pessoal e social é intrínseca a cada indivíduo, não constituindo uma mera reprodução da esfera social e cultural na qual ele se movimenta. Os sujeitos passam de um grupo social para outro, de uma sociedade para outra, de um domínio de existência para outro, sem que exista, necessariamente, continuidade, homogeneidade e compatibilidade entre todas essas experiências. Conforme as passagens que venham a ocorrer, Vieira distingue o “oblato” do “trânsfuga”. O primeiro, o “oblato”’, adquire uma nova roupagem educacional, cultural, quando se associa a um novo grupo social, deixando o outro, cujos valores passa a rejeitar. O sujeito reeduca-se, assimila e absorve os valores da nova cultura. Chega a dar a impressão de que nunca conheceu outra forma de ver e de estar no mundo. Já o segundo, o “trânsfuga”, é aquele que, embora aceitando uma nova cultura e dela se apoderando, não rejeita a cultura de origem. Constrói pontes atitudinais contextualizadoras entre as esferas culturais que atravessou. A cultura de origem passa a receber uma nova dimensão, mas não é nem rejeitada nem aniquilada. O “trânsfuga” torna-se um novo “outro”, a partir dos novos outros que habitam seu espaço cultural, sem renegar os “outros” anteriores, que já haviam sido incorporados e que apresentam significativa importância para a nova “roupagem” que passa a vestir. O “trânsfuga” parte, mas continua nos dois espaços e ainda em um terceiro: na própria ponte, por ele construída, que liga esses territórios culturais. Vieira acrescenta que, do diálogo entre o já adquirido e o que ora se adquire, e uma certa nuance do devir, surgem sincretismos que correspondem à emergência de uma nova dimensão do ser, não estática, nunca terminada, sempre sujeita a mudanças, a reconstruções identitárias. É o “terceiro instruído”, resultado da integração dinâmica e inacabada de um dado background cultural e social e dos valores vinculados pela nova margem cultural. O “terceiro instruído” constrói a ponte entre as duas (ou mais) margens, sendo a ponte a nova identidade em determinados momentos e situações. Diante disso, não me parece ser possível impedir um processo que a natureza social já nos mostra com muita clareza. Vemos que os cidadãos do mundo são, a cada dia, mais cosmopolitas, transpõem fronteiras, se internacionalizam, e suas identidades passam a ser mutantes, o que não significa, necessariamente, a perda de uma identidade primária anterior, mas sim, e antes de tudo, um ganho de novas “culturas” para o próprio indivíduo. No contexto escolar, é um ganho significativo para o próprio professor e para os alunos que o cercam.
Concluindo...
Que fique para trás o mundo moderno essencialmente racional, que buscou (utópica e inutilmente) uma unidade universal de indivíduo, para que vivamos um mundo moderno reflexivo (A. Giddens), mais “maduro”, híbrido e multicultural, onde a razão e a sensibilidade movimentem-se em maior harmonia nas constantes (re)construções identitárias pelas quais passamos. E se o termo identidade está intimamente relacionado à diferença, como um processo inseparável, talvez seja essa “movimentação” um passo mais seguro para que se superem as tensões causadas por essas questões, principalmente nas escolas. Que ocorra, enfim, um alargamento da compreensão de que somos seres inseridos em um mundo bem mais complexo do que este que nossa simples razão ainda limita.
Cláudio P. Vargas
Referências BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: JZE, 2005. DEMO, Pedro. Éticas multiculturais: sobre convivência humana possível. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: JZE, 2002. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 8a ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008. VARGAS, Cláudio Pellini; MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. Identidades em desalinho: um estudo de campo na formação em Educação Física. Educação Unisinos. v. 15, no 3, p. 215-224, set./dez. 2011. VIEIRA, Ricardo. Identidades pessoais: interações, campos de possibilidade e metamorfoses culturais. Lisboa: Edições Colibri, 2009.
Parceria com a revista brasileira PRESENÇA PEDAGÓGICA
|