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Sons da Terra: projeto de recolhas musicais da tradição oral

Quem “autoriza” a circulação dos espécimes: quem os interpreta no seio de uma determinada comunidade ou quem eventualmente procede à sua recolha? Quem são, no fim de contas, os verdadeiros guardiães da tradição?

Devo confessar, em primeiro lugar, que à semelhança do que aconteceu com muitos outros, estou certo, eu levava comigo para o trabalho de campo uma série de ideias feitas – um apreciável conjunto de “verdades” cuidadosamente reunidas, nas quais acreditava como ferramentas indispensáveis para o trabalho que me propunha fazer, aliadas a um forte sentimento de que, de algum modo, me iria integrar nas fileiras dos salvadores de patrimónios moribundos. Com o decurso dos tempos, acabei por colher bem mais dúvidas do que certezas, e muitas dessas ideias pré-concebidas acabaram por perder-se nos caminhos percorridos em demanda dos sons que perseguia.
É justamente esta experiência que quero partilhar. No entanto, para que se tenha uma ideia do trabalho realizado ao longo dos últimos 12 anos de atividade, adianto uma breve informação sobre as edições já concretizadas, que correspondem à divulgação de uns escassos 30 por cento dos registos fonográficos documentais realizados – arquivados no Centro de Música Tradicional Sons da Terra (em Sendim) e disponíveis para quem os desejar consultar.
Eis, pois, uma resumida descrição do trabalho de edição efetuado, com alguns comentários, necessariamente breves, abordando aspetos que consideramos fundamentais no nosso trabalho. Um trabalho que, em termos editoriais, se encontra ordenado por séries temáticas: Gaiteiros Tradicionais; Cantos Tradicionais; Cantos e Músicas Tradicionais; Tocadores de Concertina; Tamborileiros; Paisagens Sonoras; Outros Projectos.

Devo confessar que sempre tive muitas reservas acerca das várias antologias, ditas, da música regional ou tradicional portuguesa. Embora nascido nos arredores da cidade do Porto, sou filho de pais naturais do Minho profundo e cresci escutando os cantos e bailes mais apreciados pelas gentes minhotas, muitos dos quais, de um modo geral, eu não encontrava nas tais antologias, apesar da sua enorme popularidade e da presença indispensável nas mais diversas ocasiões festivas e lúdicas.
Por outro lado, não entendia como é que uma determinada comunidade, ou conjunto de comunidades, podia ser representada por um ou dois espécimes, normalmente descritos como sendo verdadeiramente representativos e expressivos dessa comunidade ou conjunto de comunidades.
Neste sentido, a minha opção fundamental foi para o registo dos repertórios dos intérpretes e executantes, logo mais tendo concluído que se tratava de todo um conjunto de espécimes coerente em si mesmo e com usos e funções bem determinadas (tendo-se desvanecido ou mesmo perdido espécimes cujas funcionalidades tinham cessado de se verificar).
Estou firmemente convencido de que esta prática de registo de repertórios, se for sistematicamente efetuada, pode fornecer material importante para os estudos de musicologia comparada – permitindo-nos, estou certo, perceber melhor os mecanismos da mudança desses mesmos repertórios ao longo dos tempos.

Acabei por chegar à conclusão de que os recoletores se assumiam como verdadeiros guardiães da tradição, legitimando com as suas escolhas e opções a representatividade da comunidade ou conjunto de comunidades. Ou seja, em vez dessa representatividade ou expressividade ser determinada e, por conseguinte, legitimada por usos, funções e contextos conferidos pelos respetivos intérpretes, eram os recoletores que definiam o que deviam ser as mais verdadeiras e puras joias da música tradicional dessas gentes.
Não tenho dúvidas de que o discurso da autenticidade assenta na metáfora da não-modernidade e de que as culturas nunca são verdadeiras ou falsas em si; e o que as caracteriza não é a pureza das suas expressões, mas sim a sua natureza intrinsecamente híbrida (todo e qualquer património é sempre uma sobreposição de tempos). Se já Bruno Nettl deixou bem claro que “nenhuma cultura pode reivindicar como própria uma música sem admitir que partilha muitas características e provavelmente muitas composições com outras culturas vizinhas”, não posso deixar de concordar com Miguel Torga quando escreve que “uma pátria é um contexto de afinidades”.
Como afirmou Regina Bendix, “estudar a cultura é estudar, basicamente, o mundo do inautêntico”. Não deixa de ser significativo que, etimologicamente, para os gregos e para os latinos, autêntico era o facto com autoridade e, por conseguinte, o que era autorizado. E afinal, quem é que “autoriza” a circulação dos espécimes: quem os interpreta no seio de uma determinada comunidade ou quem eventualmente procede à sua recolha? Quem são, no fim de contas, os verdadeiros guardiães da tradição?

Neste processo de autenticação da tradição levado a cabo por supostos especialistas da matéria, os folcloristas acabaram por contribuir não para a tão propalada defesa e preservação do folclore (supremo objetivo orientador das suas cruzadas), mas sim para a criação de um falso folclore – o chamado “fakelore”, de Richard Dorson. Assumem-se sempre, tais folcloristas e quejandos, como profissionais da cultura, mas não como profissionais do estudo da cultura, sendo de todo incapazes de perceber que o folclore nasce como conceito quando começa a perder funcionalidade como tradição cultural.
Depressa me apercebi de que a esmagadora maioria desses estudiosos – nomeadamente os que não hesito em incluir na categoria genérica de folcloristas – manifestam e difundem uma visão romântica e passadista do chamado mundo rural (seja lá isso o que for nos tempos que correm e em processo de reconhecida desagregação a partir de meados do século passado), com padrões estáticos de observação das tradições, sempre consideradas como utopia do passado (porventura por oposição ao progresso, como utopia de futuro). Naturalmente que tais folcloristas não podem compreender que todas as tradições resultam de um processo de constante e dinâmica invenção/reinvenção, muito menos do que o que hoje é considerado tradicional em algum momento foi moderno.
Neste contexto, logo mais me vi confrontado com os tão repetidos, como gastos, discursos sobre a morte e desaparecimento das tradições, sempre algo empobrecedor e correspondendo a uma lamentável e lastimável perda de essências vitais positivas. E, consequentemente, todos convergindo na necessidade da respetiva defesa e preservação, com caráter de urgência e como missão de todo inadiável.
Desde muito cedo compreendi que não há campanha de defesa ou de preservação que salve o que quer que seja – o que tiver de desaparecer desaparecerá a partir do momento em que as pessoas concluírem que já não serve os seus interesses.

Em jeito de conclusão, não posso deixar de considerar que se metade das asneiras são ditas em nome do passado e da tradição, a outra metade é dita em nome do progresso e da modernidade.
Impõe-se um novo olhar sobre toda esta temática, de algum modo como aquela nova mirada que nos foi sugerida por John Berger, quando, refletindo sobre o valor monetário atribuído a um simples banco de ordenha, escreveu: “Se um banquinho de ordenha chega a valer tanto numa loja de antiguidades, quanto não valerá a mão ou o traseiro da camponesa que nele se sentava para ordenhar?”
Tanto mais que qualquer ser humano vale sempre muito mais do que a sua cultura, ou não fosse ele mesmo cultura. Daí a opção pelo registo de repertórios pessoais e pelas verdadeiras histórias de vida dos intérpretes e executantes.
E dentro deste olhar renovado, não hesito em mandar às urtigas os discursos sobre a autenticidade e o purismo que nunca existiram, recusando-me a erguer qualquer bandeira de defesa e de salvação do que quer que seja e fazendo orelhas de fraga das arribas aos que negam a força criativa do presente proclamando as virtudes do passado e os malefícios do futuro. Estou perfeitamente convencido de que quem não semeia o progresso faz morrer a tradição.

Mário Correia


  
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