Avassalados por cíclicas crises de emprego, habitação, produção e consumo, continuamos a esperar dos conclaves de “experts” a descoberta de um modelo de organização socioeconómica que seja mais do que um ansiolítico ou cantiga de embalar.
Como que por diabólica conexão de memórias antigas, para sabotar merecidas férias de verão, vendo-se a animação das multidões presentes nos festivais de música que ocorriam de norte a sul de um país economicamente em estado lastimável, só lembraria ao diabo ferir o eufórico cenário com a fábula da cigarra e da formiga. Alguns de nós, os mais velhos, ainda se lembram de que essa fábula, entre outras igualmente moralistas, atribuídas a Esopo e a La Fontaine, com que deparávamos a cada passo nos primeiros livros escolares e, depois, nas leituras mais avançadas de autores como Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Bocage ou Monteiro Lobato, era um elemento de estudo da literatura clássica, escrita ou oral. Hoje mesmo, não é despicienda a consideração da fábula nos estudos literários e sociológicos, quer nos situemos na iluminada Grécia (Esopo vem do século VI a.C.), quer na mais obscura África atual. Basta pensar como, em todos os povos, a fábula, o adágio ou o conto fantástico, saídos do mesmo tronco mítico-imagético, só se diferenciam pela espécie dos protagonistas e do cenário físico que os enquadra. No moralismo que em todos eles preside, o trabalho tem geralmente a primazia das virtudes indispensáveis à vida, mesmo quando compete com a suprema aspiração da criatura humana (e porventura de todas as outras...), que é ser feliz sem sofrer. Já se dizia no Livro de Eclesiastes (século X a.C.): ”Compreendi bem, que o bom para o homem está em comer, beber e gozar o bem-estar em todo o trabalho que suporta debaixo do sol durante todos os dias de vida que Deus lhe dá. Esta é a sua sorte.” Aristóteles não era tão básico quanto ao objetivo da vida: “Pois nós escolhemos a felicidade por si mesma e nunca tendo em vista algo além dela; amamos a honra, o prazer, a inteligência... por os supormos meios de atingir a felicidade.” Muito mais tarde, o nosso Agostinho da Silva, quando abjurava a “escravidão” do trabalho e defendia que o homem tinha nascido para criar e contemplar o mundo em liberdade, não desdenharia repetir o juízo de Jean Jaurès, avocando Marx, de que “a história humana apenas começará quando o homem, escapando enfim à tirania das forças inconscientes, dominar, pela razão e pela vontade, a própria produção.” Em abono daquela fábula, cujo moralismo certamente ninguém ousará classificar como reacionário, temos de distinguir quem trabalha por necessidade vital de quem, por habilidade e/ou poder, vive da exploração desse trabalho. Na transposição em verso que dela faz Bocage, lembremos então o encontro da cigarra e da formiga, por altura do fim das colheitas, quando a primeira se dirigiu à segunda para lhe fornecer alimento, justificando que levara o tempo das sementeiras a cantar, mas prometendo que lhe pagaria “os juros e o capital”. Resposta imediata da formiga, que levara todo o ano a trabalhar para garantir o sustento no inverno: “Oh! Bravo! Cantavas? Pois dança agora!” Com o conhecimento que hoje temos da vida das formigas e de outros insetos laboriosos e socialmente organizados, como as abelhas e as térmitas, nós, humanos, não podemos deixar de nos surpreender perante uma evidência: desde que o planeta é habitável, aquelas criaturas vivem segundo uma ordem coletiva de valores ou necessidades que lhes assegura a sobrevivência e continuidade. Nesse ordenamento, identificam-se os viajantes, os obreiros e os soldados, os que buscam a alimentação perto ou longe, os que constroem a habitação coletiva e a defendem das adversidades. Nuns casos abrem-se galerias nos troncos das árvores, noutros subterrâneos de enorme dimensão, noutros ainda, como o salalé em África, erguem-se autênticas fortalezas de massa barrenta, quais pirâmides para marcar território e afrontar os inimigos papa-formigas. Tudo isto dá que pensar a humanos como nós, que, avassalados por cíclicas crises de emprego, habitação, produção e consumo, continuamos a esperar dos conclaves de “experts” a descoberta de um modelo de organização socioeconómica que seja mais do que um ansiolítico ou cantiga de embalar, boa de ouvir em férias de verão, ainda esperando que, no inverno, não tenhamos de concordar com o Eclesiastes: “Apliquei o meu espírito a um estudo atencioso e à sábia observação de todas as coisas que sucedem debaixo dos céus. Deus impôs aos homens esta ocupação ingrata. Vi tudo o que se faz debaixo do sol e achei que tudo é vaidade e vento que passa.” É verdade que a suprema inteligência da criatura humana lhe confere até capacidade anímica para moldar deuses à sua imagem e, pela ciência, pensamento e ambição, viajar através do universo, esperando mesmo encontrar a sua primeira partícula. Mas, por outra conexão diabólica, enquanto ouvindo e lendo seguimos o que se diz e repete na comunicação social como um refrão da cigarra, ainda haveria de acometer a nossa esperança num futuro certo e seguro aquele diálogo entre Hamlet e Polonio: – What do you read, my lord? – Words, words, words.
Leonel Cosme
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