A insegurança dos cidadãos de diversos países europeus; a geopolítica da morte entre Ásia e África; o agrobusiness avançando sobre a Amazônia; a ansiedade e a amargura de vidas individuais – são melancólicas paisagens dos dias que estamos a viver.
As faces do ocaso, por vezes, se disfarçam na simulação de um esboço de alegria simbolizada por um instante de sorriso triste. Reação compreensível perante determinadas intermitências de um mundo que exala desalento, que se esconde e se recusa a deixar-se entender. No limite, parece ele querer repisar a máxima do filósofo franco-romeno Emil Cioran segundo a qual “o limite de cada dor é uma dor maior”. Do deambular pelo terreno cioraneano, recolhe-se da pena do seu tradutor Thomaz Brum uma asserção com significação ontológica para o tempo presente: “só uma geração desiludida poderia se entusiasmar por uma visão tão negativa da história. É preciso reconhecer que a vida não resiste a uma interrogação séria e que é difícil, e mesmo impossível, atribuir sentido ao que visivelmente não tem sentido”. Como estrutura da relação do sujeito com ele próprio e com o mundo, o tempo é uma instituição no plano da sensibilidade que, todavia, não é guiado por uma teleologia absoluta para pintar “paisagens sensíveis”. Nos cumes do desespero, o abrigo na metafísica, vá lá, é sempre uma alternativa. Mas que não sejam alimentadas grandes ilusões! As máscaras sobre as máscaras sempre têm um fim, que desconcerta até mesmo quem aposta as suas fichas numa opção apofática. Pode-se, é certo, como meio de reflexão imanente, buscar contentamento numa ancoragem mítica – seguindo uma certa trilha gnóstica de revolta contra um demiurgo supra-histórico –, mas parece evidente que isto não anula a possibilidade de o castelo da estância metafísica acolher, na totalidade das suas dependências, sombras que põem em movimento a incerteza e a angústia. Quanto desalento, desilusão e sofrimento na contemporaneidade! A era da reprodutibilidade técnica, digamos, invocando o testemunho de Benjamin, não parece apenas ter submetido a obra de arte à existência serial, mas, ao que tudo indica, ampliou a serialidade a praticamente todas as esferas da vida e, mais do que isto, tende a seriar o fútil, banalizar a desventura e desvirtuar a pólis. A insegurança ontológica de cidadãos de diversos países europeus face a um sistema que – para assegurar a sua reprodução – os reduz a incômodas estatísticas econômicas; a geopolítica da morte entre Ásia e África; o destruidor “minotauro” do agrobusiness avançando com toda a sua força sobre a Amazônia; a ansiedade e a amargura de vidas individuais, etc., são exemplos das melancólicas paisagens dos dias que estamos a viver. Les fleurs du mal. Sim, seja como for, mutatis mutandis, uma fresta faz clarear a lembrança do Baudelaire de «As Flores do Mal». “O imenso e frio cemitério sem limite / onde repousa, à luz de um sol pálido / quando povo existiu”. Uma vez mais aludindo a seara benjaminiana, é de se trazer a lume a alegoria, em tom escatológico, adornada a partir do quadro Angelus Novus, o anjo da História. A tempestade do progresso impelindo-o para o futuro enquanto um amontoado de escombros cresce até ao céu. Da dialética do esclarecimento frankfurtiana, recolhemos que esse anjo, que expulsou os seres humanos do paraíso em direção ao progresso técnico, é, ele próprio, com a espada em chamas, a imagem desse progresso. A trágica mensagem de Angelus Novus bem pode chamar a atenção do tempo presente para o fato do que significa a existência individual e coletiva se encontrar submetida às – não poucas vezes dilacerantes – trilhas das ruínas históricas. A tempestade dos acontecimentos que sopra em todas as direções. A vida não é um fenómeno que escoa de modo unidimensional, mesmo que se busque o essencialismo no castelo da estância metafísica. Parece que, na penumbra do tempo presente, ao se falar de “sentido da vida”, desse entendimento ter-se-á que partir. Porque, se a vida for limitada a um objetivo único ou inexaurível, o viver passa a ser a negação do sentido da vida.
Ivonaldo Leite
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