Crianças da Educação Infantil fotografam a escola. A brincadeira ajudou a pesquisadora a compreender melhor as percepções infantis sobre o espaço e o tempo escolar. Além disso, despertou a reflexão sobre a importância de buscar novos olhares.
Durante a realização do doutorado em educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisei as presenças afirmativas das crianças no cotidiano escolar da Educação Infantil, que por meio de gestualidades, vozes, olhares, expressões, sinalizam outras leituras de mundo, para além das aprendidas dentro dos muros da escola. Imersa no cotidiano escolar com as crianças, eu acompanhava as atividades rea lizadas em sala de aula, no pátio, passeios, reuniões pedagógicas, festas comemorativas, entre outras. Após algum tempo de convívio, tornei-me uma estranha conhecida, o que favoreceu para que eu fosse convidada pelas crianças para participar de suas brincadeiras. Muitas vezes, ouvia: “Chama ela pra brincar!”. Ao aceitar o convite, deixava-me ser conduzida pelas crianças, vivendo a inquietação de habitar outros espaços e tempos de aprendizagens. Esses momentos permitiram-me compreender a complexidade presente nas interações infantis, o que as crianças falam, negam, afirmam, inventam, reproduzem, silenciam... As gestualidades infantis podem, ao nos afetar, provocar mudanças nas práticas pedagógicas, revitalizando saberes e fazeres na Educação Infantil. Na última semana de aula, entre a confecção dos enfe ites de Natal e as conversas sobre a mudança de escola – pois, no ano seguinte, as crianças seriam encaminhadas para escolas de Ensino Fundamental –, falávamos da saudade que iríamos sentir do convívio cotidiano. Durante a conversa, a aluna Gabriela, 5 anos, sugeriu fotografar a escola. A menina contou que para diminuir a saudade que sentia da mãe, que mora em outra cidade, ela olhava as suas fotos. Em nossa conversa, a fotografia surgiu como possibilidade de ampliar os sentidos da escola – imagens capturadas pelos olhos das crianças, o jeito que elas sentem o espaço e o tempo escolar –, e também como oportunidade de aprender com as lógicas infantis. Lógicas que muitas vezes desestabilizam os nossos saberes sobre os lugares “comuns”, mostrando-nos outras apropriações possíveis. Neste contexto, perguntei às crianças se elas conheciam uma câmera digital e elas me responderam que sim. Então, perguntei se elas já haviam tirado fotos, e elas me responderam que não, só de brincadeira, com máquina de “mentira”. Combinamos que eu emprestaria a câmera digital para que elas tirassem fotos da escola. Com todos de acordo, a brincadeira “imagens da escola” começou.
Uma câmera na mão e um mural muito acima da cabeça. Gabriela foi a primeira a se aventurar pela escola com a câmera digital. Ela “ganhou” esse privilégio porque foi quem teve a ideia. Com a máquina bem firme nas mãos, ela foi caminhando devagar e, cuidadosamente, saiu da sala para fotografar a escola. Ela foi em direção ao mural e fez fotos de alguns trabalhos realizados ao longo do ano pelos alunos da escola. Gabriela conseguiu identificar alguns trabalhos de seus colegas no mural, outros não. A menina, então, supôs que os trabalhos deveriam ser das turmas da tarde. Gabriela continuou procurando outros trabalhos afixados no corredor. Depois, cautelosa, ela caminhou até o pátio fazendo “malabarismos”, pois as crianças, que estavam na hora do recreio, paravam em frente à máquina e lhe pediam que tirasse uma foto delas. Percebi que a menina não tirou fotos das crianças e manteve seu interesse nos trabalhos do mural. A foto feita por Gabriela me fez olhar com mais atenção para esses trabalhos expostos em murais com o objetivo de deixar à mostra nos corredores da escola a “expressão” do processo de ensino e aprendizagem desenvolvido em sala de aula. O que esta seleção nos diz? O que esconde? O que mostra? Os trabalhos afixados na parede são textos que podem ser lidos e compreendidos pelas crianças, mas foram expostos no alto, fora do alcance delas. Foram colocados ali para serem admirados – lógica da contemplação. Da mesma forma, alguns aparatos pedagógicos estão expostos na sala de aula – no alto da parede – como instrumentos de aprendizagens mecânicas de conteúdos, entre os mais comuns, alfabetos e numerais, que de maneira fragmentada e descontextualizada, estão a serviço da repetição.
Fotografar além dos muros. Após algum tempo caminhando pela escola, cuidando para que as crianças não a derrubassem com a câmera nas mãos, Gabriela retornou à sala de aula e a entregou ao seu colega Gabriel. Ansioso, ele saiu correndo em direção ao portão de entrada, sentiu o vento, ergueu a cabeça e ficou olhando para o céu. O dia estava nublado. Percebi que Gabriel se interessava por algo específico. De longe, ele viu uma pomba pousada no fio de luz. Ele se preparou para tirar a foto do pássaro, mas, quando olhou para o visor da câmera, não enxergou a pomba. Novamente, a olho nu, fixou a visão na direção do pássaro, retornou seus olhos para a câmera e não o viu. Confuso, Gabriel fez o movimento de subir e descer cabeça várias vezes. Nada! Muito intrigado, ele perguntou: “Por que aquela pomba não aparece aqui? Rapidamente, ele perguntou: “Não é por que ela está longe?”. Concordei com ele e mostrei que na câmera tem um botão que aciona o zoom e permite aproximar até o foco desejado. Ele achou graça da descoberta e colocou o zoom máximo, após enxergar a pomba no visor, Gabriel tirou sua foto. Ainda em frente ao portão, ele me pediu para segurar a câmera enquanto se ajoelhava e observava a rua com o rosto muito próximo ao chão. Diante das grades do portão, ele ficou alguns segundos observando o lado de fora da escola e parecia encontrar o que fotografar – a vida cotidiana, a profusão de pessoas, as falas, os gestos, os movimentos... Gabriel tirou fotos da rua. Em suas imagens, aparecem pneus de carros e de motos, pés e pernas de pessoas caminhando. Logo em seguida, chamou-lhe a atenção um gari que estava varrendo a rua. Com o olhar curioso, Gabriel acompanhava o seu trabalho. Como estava difícil tirar as fotos do lugar em que se encontrava – muito próximo ao chão – o menino foi em direção ao outro portão da escola, feito com grades que possibilitavam colocar a máquina para fora e tirar fotos. O gari percebeu que estava sendo fotografando e, em alguns momentos, muito discretamente, deu sorrisos, sem deixar de fazer o seu trabalho. Gabriel registrou imagens da escola focando além de seus muros, fotografando o que compõe o cotidiano escolar. Ele mostrou a escola inserida num contexto em movimento. Da escola, ele viu as pessoas no seu ir e vir, carros transitando o tempo todo, o trabalhador que ao varrer a rua chama a sua atenção. Ele revelou a sua maneira de sentir o espaço e tempo escolar e de se relacionar com o mundo. Suas imagens revelam outras vozes, outras formas de ser e de dizer, sujeitos que muitos de nós vemos, mas não enxergamos e tampouco registramos em nossa memória. Gabriel nos mostrou uma escola que dialoga com o mundo – e não uma escola que se fecha, entre faixas de segurança, criando um mundo à parte. O estranhamento ao ver as imagens da escola das crianças me fez questionar o modo como vamos perdendo a capacidade de ver. Como, ao longo dos anos, nossos sentidos são silenciados? Que olhar é esse que padroniza as paisagens? Um dos perigos que corremos é o olhar acostumado, que finge que vê, que não estranha, não se surpreende, acha tudo “normal”. Quando isso acontece, precisamos (re)aprender a ver.
Aprender com as crianças. As inquietações deste texto surgiram do encontro com as crianças no cotidiano escolar da Educação Infantil, que me ensinaram a olhar de novo e com calma para o “já visto”. Nas imagens da escola, feitas pelas crianças, encontrei possibilidades de tecer outros saberes com os sujeitos envolvidos na pesquisa. Eles mostram diferentes olhares para o espaço e tempo compartilhado. Eles veem o mundo com enfoques diferentes e me apresentaram a escola a partir de seus olhos. Quem sabe, podemos também nos deixar conduzir pelas mãos das crianças, pelas vozes, pelos olhos, pelos saberes, pelos fazeres, pelas suas presenças afirmativas?
Cristiana Callai de Souza
|