O acervo da Colecção de Documentos das Artes Cénicas encontra-se disponível no Arquivo Distrital do Porto, para consulta e estudo. São perto de 1.700 documentos, muitos dos quais se destacam pela raridade, constituindo-se como uma das mais interessantes colecções documentais na área das artes de palco, com especial predominância para o teatro de revista, ópera e opereta. Visitar o arquivo, e em especial a colecção, é visitar uma parte do passado histórico e cultural da cidade e do país.
O espólio intitulado Colecção de Documentos das Artes Cénicas (CDAC) foi, em grande parte, reunido por José Vitorino Ribeiro (1857-1940). Natural do Porto, nasceu no seio de uma família ligada às artes e à cultura. Teve dois irmãos: Joaquim V. R. (1849-1928), conservador, professor, coleccionador e pintor, autor do quadro Mártir Cristão, hoje integrado na colecção do Museu Nacional Soares do Reis; e Pedro V. R. (1882-1944), médico, radiologista, historiador, arqueólogo, etnógrafo e crítico de arte, um dos primeiros portugueses a utilizar a radiografia de obras de arte como processo de validação de autenticidade. José Vitorino Ribeiro radicou-se em Lisboa, onde exerceu as actividades de ‘revisor de primeira’ na Imprensa Nacional e tipógrafo. Importa, especialmente, a sua faceta de coleccionador, sobretudo de livros, mas não só. Bibliófilo, camilianista e leitor compulsivo, reuniu ao longo da vida uma considerável colecção de livros e documentos avulsos, hábito que lhe valeu a alcunha de Formiguinha. Após a sua morte, o espólio foi continuado e enriquecido por Luís César de Lemos (1890-19??), seu genro, que, como empresário teatral, partilhava do gosto do sogro pelas artes cénicas. Mais tarde foi entregue aos herdeiros de José Vitorino Ribeiro, os netos Maria Branca R. de Lemos, Maria Luísa R. de Lemos, Maria Isilda R. Vieira e Jorge Antelmo R. Vieira, que doaram a colecção ao Arquivo Distrital do Porto (ADP).
A colecção. O acervo que constitui a CDAC compreende documentos que abrangem uma moldura cronológica entre 1774 e 1961, com particular incidência para o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX. É composto maioritariamente por argumentos e libretos, contendo também cartazes, programas e postais ligados às artes de palco, como o teatro e a ópera. Encontram-se textos de géneros diversos, como argumentos de bailado, autos, cançonetas, comédias, dramas, fados, farsas, mágicas e fantasias, óperas, operetas, paródias, teatro de revista, tragédias, vaudevilles e zarzuelas. Existem ainda alguns documentos relativos a concertos de música e recitais de poesia, programas de cinema, obras de literatura geral, publicações periódicas e almanaques, instrumentos de acesso (como catálogos e inventários manuscritos), documentos pessoais e recortes de jornais e revistas. No que toca ao teatro, a maioria da documentação é constituída por textos de peças de teatro de revista, opereta, mágicas e fantasias, sobretudo no que toca às coplas – a parte cantada – dos textos editados e representados nos principais palcos portugueses. Este aspecto é muito interessante, tendo em conta que a colecção abarca anos conturbados, em termos políticos, sociais e económicos, marcados por acontecimentos determinantes para o país, atravessando a Monarquia Cons titu cional, a I República, a Ditadura Militar e parte do Estado Novo. O teatro de revista dedica-se à revisão dos acontecimentos mais significativos de cada ano e, apesar das acções da censura, muitas vezes a política toma a cena como protagonista de um retrato que faz a imitação e a caricatura da realidade, não só política, mas também social, expondo hábitos e criticando costumes. Em relação à ópera, destacam-se os textos dos grandes autores clássicos estrangeiros, representadas pelas principais companhias líricas nacionais, como a Grande Companhia de Ópera, Opereta e Fantasias, em salas como o Coliseu dos Recreios, sob direcção de empresários como Ricardo Covões. É de destacar o conjunto – já digitalizado e disponível no catálogo do ADP – de 84 cartazes, de vários tamanhos, cores e formatos, importantes não só pelo aspecto gráfico e pela riqueza informativa, mas ainda pelo facto de terem sobrevivido até aos nossos dias apesar da sua natureza frágil, que se diria quase descartável. É entre os cartazes que se encontram algumas das peças mais bonitas da colecção – é o caso dos guardanapos do Teatro da Trindade, que faziam a divulgação das peças em cena e dos quais existem três exemplares: a mágica O Gato Preto, a opereta A Filha da Sra. Angot e a revista de costumes brasileiros A Capital Federal. É impossível não fazer uma pequena nota acerca da publicidade que preenche os espaços em branco de algumas publicações. Não constitui, por si só, um género literário ou uma secção documental autónoma, sendo que a publicidade vem sempre associada a outros documentos, sobretudo os programas. Ainda assim, constitui uma fonte de informação privilegiada sobre os hábitos e interesses do público das principais salas de espectáculo de Lisboa e Porto, no período cronológico que a colecção contempla. A necessidade de se fazer marketing de vendas a uma banheira e a pergunta “Porque motivo não tem V. Ex.a um telefone?” dizem muito sobre a sociedade portuguesa da primeira metade do século XX, já para não falar da mais-valia que é saber que por apenas quatro escudos poderíamos, em 1947, adquirir um “tubo duplo de Couraça, a melhor pasta dentífrica portuguesa”.
Divulgação e visitas. A CDAC convida a uma visita ao passado. Sobe o pano dos palcos e permite espreitar uma outra época. Uma época de cachecóis de plumas e bigodes farfalhudos, de mudanças sociais e revoluções políticas. Uma época em que o teatro esgotava a lotação de cada espectáculo e se constituía como uma expressão cultural e artística, tanto erudita como popular, oferecendo momentos de lazer e drama, comédia e crítica social, à sua “plateia (...) regurgitando deste excelente e bem-humorado público dos domingos, que, vencida mais uma semana de trabalho, gosta de apreciar o teatro musicado, leve, alegre, capaz de entreter e divertir” [crítica à representação de A Pêra de Satanás, Diário de Lisboa, 21.01.1924]. São perto de 1.700 documentos, muitos dos quais se destacam pela raridade, compilados pelos coleccionadores com um cuidado primoroso, acompanhados de anotações manuscritas e guardados em pastas e capilhas decoradas com colagens de papel colorido. Acompanha a colecção um catálogo manuscrito que atesta o interesse e a dedicação que este espólio, agora disponível a novos públicos, mereceu da parte dos seus criadores. O trabalho de restauro, catalogação e acondicionamento realizado no arquivo distrital, que permitirá a salvaguarda e preservação destes documentos, é complementado por iniciativas de divulgação do acervo e transmissão da sua memória levadas a cabo pela Extensão Cultural e Educativa do ADP. À enorme diversidade e riqueza documental deste arquivo acrescenta-se agora esta nova colecção. Visitar o ADP, e em especial a CDAC, é visitar uma parte do passado histórico e cultural da cidade e do país. Acessível a todos. Mesmo aqui ao lado.
Raquel Patriarca
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