Os filmes destinados às crianças tornam-se um bom pretexto para vender uma infinidade de produtos derivados, para além de tenderem a uniformizar pelo gosto crianças de todo o mundo.
Um aspecto distintivo da cultura infantil na sociedade contemporânea, que J. L. Kincheloe apresenta e problematiza, é ela ser feita por adultos (empregados de corporações que visam ao lucro) direcionando-a às crianças, enquanto no passado a cultura era propagada de crianças para crianças. Como assinala Angel Quintana: “Atualmente, em um mundo ocidental marcado pelos desajustes de riqueza, as crianças têm de aprender a crescer em uma selva urbana na qual nada, nem ninguém, parece se preocupar com o mundo que vão acabar herdando, nem com a criação de utopias que permitam desenhar alguma esperança de futuro. Os tiroteios transformam-se em silêncio no cinema de John Woo para certificar a raiz desta crise vital, enquanto o cinema contemporâneo não cessa de construir uma série de fábulas estimulantes sobre o esquecimento da infância” [Salvem as crianças! Ou a infância como horizonte de certo cinema contemporâneo, em «A infância vai ao cinema», I. Teixeira, J. Larrosa & J.M. Lopes (org)]. Os Estados Unidos são um caso à parte. Eles colocam muitas crianças nas telas, mas com a única obsessão de atrair o maior número de pessoas às salas de cinema. Salvo raríssimas exceções, é o valor consensual da criança que é então utilizado. O filme destinado às crianças torna-se um bom pretexto para vender uma infinidade de produtos derivados, para além de tender a uniformizar pelo gosto crianças de todo o mundo (J. Kenway & E. Bullen). No entendimento de Manuel Jacinto Sarmento: “As personagens do Senhor dos Anéis, Harry Potter e as suas aventuras, os soldados dos jogos da Mattel ou dos Game-Boys, Barbie, Pokemon e os animais personificados da Eurodisney, da Disneyworld e da Warner Brothers, associam-se a tantas outras personagens fictícias (e algumas reais, transformadas em ícones comerciais, como Beckham, Ronaldinho ou Figo) que contribuem para a configuração do universo de conhecimento e de interações cotidianas de crianças (mas não apenas crianças) de todo o mundo” [Imaginário e culturas da infância]. A noção de espectador se confunde com a de consumidor. Um fato evidente é o recurso permanente dos americanos ao maravilhoso sempre que se trate de personagens infantis. Ocorre uma infantilização coletiva da infância e do imaginário, em que a realidade é rapidamente descartada. H. Giroux indica que “a Disney constrói um mundo inteiramente compatível com o consumismo”, na medida em que “fornece a imagem em que a América se constrói”. Assim, os filmes da Disney, ao incorporarem princípios norteadores dessa sociedade, acabam por ensiná-los. Um exemplo é o do filme “O Rei Leão”, em que todos os personagens com poder, independência e senso de liderança são machos. Os exemplos fornecidos por Giroux são variados, mas mostram a repetição do tema, em que “todas as mulheres nesses filmes são definitivamente subordinadas aos homens e definem seu senso de poder e desejo quase exclusivamente em termos de narrativas do macho dominante” [Os filmes da Disney são bons para seus filhos?, em «Cultura infantil: a construção corporativa da infância», J.L. Kincheloe & S.R. Steinberg (org)]. O estereótipo racial também é abordado na análise dos filmes da Disney, em que os americanos nativos são descritos como violentos “peles-vermelhas”, e os árabes retratados no filme “Aladim” aparecem como grotescos, violentos e cruéis.
José Miguel Lopes
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