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Nações Unidas: construção da paz ou pacificação?

Onze anos após o fim da guerra civil na Serra Leoa, o país é visto como um caso bem sucedido das Nações Unidas e da intervenção internacional: realizaram-se duas eleições nacionais pacíficas e os rebeldes da Frente Revolucionária Unida (FRU) foram desmobilizados.

Foi com esta informação de fundo que cheguei, em Maio passado, à Serra Leoa, para trabalhar num projecto de investigação sobre o papel e o potencial da Educação como contributos para a construção da paz. Durante um mês, entrevistei uma ampla gama de actores nacionais e internacionais ligados ao desenvolvimento e viajei por todo o país para visitar escolas e conversar com professores.
A guerra na Serra Leoa começou em 1991, quando os membros da FRU atacaram cidades perto da fronteira com a Libéria. A FRU alegou que a sua missão era derrubar o regime de partido único do Congresso de Todo o Povo (no poder desde 1968) e implantar a democracia. Subjacentes ao conflito estão décadas de desgoverno colonial e pós-colonial e corrupção num dos países mais pobres do mundo. O catalisador imediato para a guerra foi um plano de ajuste estrutural, imposto pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, que dizimou o gasto público que antes era dirigido aos serviços sociais. A FRU encontrou amplo apoio entre uma população marginalizada, particularmente nas áreas do Leste do país. A guerra foi sangrenta e cruel, com todos os lados a cometerem atrocidades, sem que nenhum conseguisse vencer.
No início de 2002, a guerra foi oficialmente declarada encerrada, sem vencedores e com uma paz instável. Entre 50.000 - 75.000 pessoas foram mortas e mais de metade da população do país foi deslocada. O Relatório de Desenvolvimento Humano realizado pelas Nações Unidas em 2010 estima que o rendimento médio foi reduzido em 50% depois dos 11 anos de guerra, e ainda não recuperou.
A Educação não ficou incólume a esta destruição. Calcula-se que até 70% da população em idade escolar teve pouco ou nenhum acesso a educação durante a guerra, deixando o legado de uma geração perdida. Durante o conflito, centenas de escolas foram severamente danificadas ou destruídas. O Banco Mundial estimou que, em 2001, apenas 13% das escolas da Serra Leoa permaneciam utilizáveis. Milhares de professores e crianças foram mortos, mutilados ou deslocados, e muitos mais foram recrutados à força ou voluntariamente para as fileiras das diferentes partes em conflito.
Enquanto os soldados da Organização das Nações Unidas foram incumbidos de garantir a paz, iniciou-se um processo de reconstrução pós-conflito e reconciliação. Alguns recursos foram direccionados para a Educação, mas a maior parte da ajuda internacional foi para garantir a segurança, facilitando a democracia e criando um clima positivo para o investimento internacional.
Esta tríade de segurança, eleições e mercados tornou-se a receita-padrão para a construção da paz promovida pela ONU e é geralmente conhecida como a Tese da Paz Liberal. Trata-se de uma espécie de teoria trickle-down (*) da construção da paz, misturando segurança, democracia e neoliberalismo. O problema, porém, é que esta teoria ignora os responsáveis pelo conflito e pretende impor um modelo de democracia liberal em qualquer situação pós-conflito.
Na década de 1970, Johan Galtung escreveu sobre a diferença entre paz negativa e paz positiva. Para o autor, a primeira apenas implica a cessação da violência, enquanto a segunda se refere à resolução das causas subjacentes que conduziram ao conflito. Embora este entendimento seja talvez demasiado binário, o que fica claro na Serra Leoa é que, embora exista de facto segurança, não se percebe como é que as injustiças e queixas que sustentaram o conflito não tenham sido de alguma forma abordadas.
Ao invés de construção da paz, parece que o modelo actual é melhor descrito como um modo de pacificação. Em vez da segurança e de desenvolvimento sustentável, a Serra Leoa parece ter apenas segurança e miséria. Embora, como educadores, saibamos que o sistema de educação pública não pode resolver todos os problemas numa sociedade, julgo que mais investimento em serviços sociais básicos – desde que bem gasto e dirigido aos mais marginalizados – seria uma prioridade muito mais premente do que confiar apenas na segurança, na democracia e nos mercados para lidar com questões que estão fundamentalmente ligadas à distribuição desigual de recursos.
A Educação poderia desempenhar um papel muito mais positivo na reconstrução pós-conflito, mas continua a ser marginalizada entre as actuais abordagens da ONU. É hora de mudar...

Mario Novelli

(*)Termo de origem norte-americana que remete para a ideia de que isenções fiscais ou outros benefícios económicos concedidos a empresas e ricos acabam por beneficiar os membros mais pobres da sociedade, melhorando a economia como um todo.


  
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