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Os rankings e a defesa de parcerias público-privado como forma de governo das escolas públicas

Sendo as lideranças e a qualidade dos professores fundamentais na vida das escolas, não são estes fatores que, só por si, permitem que se vença o concurso anual que os jornais têm vindo a promover.

À hora zero do dia 15 de Outubro de 2011 publicaram-se, pela 11a vez, as listas seriadas das escolas básicas e secundárias, que a imprensa tem vindo a construir a partir dos resultados obtidos pelos alunos nos exames nacionais. As novidades, como se esperava, foram as de sempre, ainda que não deixemos de nos espantar como houve um jornal diário e um canal televisivo que atribuíram o primeiro lugar ao Colégio Internacional de Vilamoura – que, pasme-se, alcançou a tão desejada classificação a partir dos resultados obtidos através da realização de 11 exames...
O Público foi mais inteligente, na medida em que não deixou de publicar o trabalho de seriação que realizou, amaciando-o, no entanto, com uma entrevista a Gert Biesta, cujo título fala por si: “Os rankings são muito antiquados e não devem ter lugar numa sociedade civilizada”.
Importa referir, contudo, que a estratégia que coloca o Colégio Internacional de Vilamoura no topo da lista, ainda que possa ser entendida como venda de gato por lebre, tem, pelo menos, a vantagem de evidenciar como as comparações, no domínio em questão, são falaciosas e, por isso, injustas. Ao contrário, a estratégia mais sofisticada do Público – que prefere atirar a pedra e esconder a mão – só cria a ilusão de um debate, que, de algum modo, se perde, tanto nas cores do mapa do (in)sucesso nos exames de 2011 como nas 18 páginas com as listas, de tipo diverso, onde se elencam, por distrito e respetivos concelhos, os desempenhos dos alunos.
Sendo esta, por vezes, uma leitura dolorosa, não deixa de ser, apesar de tudo, interessante, sobretudo por causa de alguns dos novos argumentos que os partidários dos rankings começam a propor para legitimar a credibilidade da operação.
Um desses argumentos tem a ver com o reconhecimento de um dos riscos que se correm quando a imprensa cria e publica as listas de seriação: o de se omitir informação fundamental que pode adulterar os juízos de valor, quer acerca do trabalho que as escolas promovem, quer acerca das aprendizagens que os alunos lá realizam. É um argumento implícito no editorial do Público, da autoria de Nuno Pacheco, que acusa os diferentes ministérios da educação de sonegarem informação que permitisse à imprensa pôr “à disposição da opinião pública um conjunto de dados que, enfim, permitam construir um ranking à medida dos desejos mais exigentes”.
Uma perspetiva secundada, no mesmo jornal, por Rodrigo Queiroz e Melo (RQM), diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP). Segundo o articulista, se o ministério da educação disponibilizasse esses dados, poder-se-ia verificar, entre outras coisas, que há escolas privadas nos 100 primeiros lugares dos rankings em cujo corpo discente se encontram mais de 50% de alunos que beneficiam do primeiro ou do segundo escalão da ação social escolar. Deste modo, RQM tenta matar três coelhos com uma só cajadada:
– põe em causa o que estudos e especialistas têm vindo a demonstrar – que o lugar privilegiado que algumas escolas privadas ocupam nos rankings deve-se, em larga medida, ao facto de serem frequentadas por estudantes oriundos de estratos sociais económica e culturalmente mais favorecidos;
– insinua que os resultados dessas escolas não têm a ver, por isso, com este fator, mas com a qualidade das lideranças e dos professores que lecionam nesses contextos educativos – tal como defende João Muñoz, vice-presidente da AEEP e administrador do Colégio S. João de Brito, em entrevista ao Público;
– reivindica, mais uma vez, a necessidade de as escolas privadas serem financiadas por parte do Estado, para que as famílias, independentemente da sua origem socioeconómica, possam optar também pelas escolas privadas.
Ainda que pudéssemos discutir se uma tal preocupação tem a ver com a salvaguarda da possibilidade de as famílias poderem optar ou com a necessidade de as escolas poderem selecionar os seus alunos, importa-nos, neste momento, discutir apenas a plausibilidade dos argumentos propostos por RQM.
Apesar de nos situarmos no terreno das hipóteses, vale a pena fazer um breve exercício e verificar que na lista das escolas do Ensino Básico, só 14,9% correspondem a escolas do Ensino Particular e Cooperativo. Destas, cerca de 51% localizam-se nos distritos de Lisboa e Porto, havendo somente 12,9% de escolas deste subsistema situadas em distritos do interior do país. Sabendo nós que os resultados obtidos nos exames nacionais pelos alunos das escolas do litoral são significativamente superiores aos dos alunos das escolas do interior, constata-se de imediato que, até deste ponto de vista, as escolas do EPC beneficiam de um tal fator, já que se situam, de forma esmagadora, nas zonas geográficas onde os resultados escolares, por razões diversas, são inequivocamente melhores.
Tendo por referência a posição 100 do ranking, verifica-se também que em Bragança, Castelo Branco, Guarda e Vila Real não há nenhuma dessas escolas situadas nos 100 primeiros lugares, ainda que noutros distritos do interior, como Beja e Évora, ou na ultraperiférica Região Autónoma da Madeira, as três escolas que poderão ser localizadas nessa lista mais restrita se situem quer nas capitais de distrito, quer na cidade do Funchal.
No litoral, a situação tende a ser diferente, ainda que seja, sobretudo, nos distritos de Lisboa (onde há escolas naquela lista em sete concelhos) e do Porto (oito concelhos) que aquela tendência centralizadora menos se faz sentir. Uma tendência à qual, de resto, o Ensino Secundário não é imune, já que só o Colégio de Nossa Senhora da Boavista, em Vila Real, se intromete numa lista que tem no 64º lugar – em 113 possíveis – a primeira escola que não pertence aos distritos de Braga, Coimbra, Leiria, Lisboa, Porto e Setúbal (Colégio do Castanheiro, em Ponta Delgada).
Admitindo que o ranking publicado só permite que concluamos que as escolas do EPC preparam melhor os alunos para os exames, exercendo, por isso e eventualmente, uma maior atração sobre as famílias dos alunos mais bem sucedidos, há que admitir, mesmo assim, que um tal sucesso não deixa de ser condicionado, e de forma inequívoca, pela situação geográfica da larguíssima maioria destas escolas – o que, de algum modo, vem pôr em causa a tese de que os resultados obtidos terão de ser explicados, sobretudo, pela qualidade das lideranças e dos docentes.
Se aceitássemos esta perspetiva, a partir da qual se visa defender que a qualidade das lideranças e dos docentes é uma propriedade das escolas privadas, como se explica que, no Ensino Básico, 17,7% das escolas particulares se situem entre as 642 piores classificadas no ranking, num total de 1.283 estabelecimentos de ensino a contabilizar? E, pior do que isso, no caso do Ensino Secundário, esse número aumente para próximo dos 31%?
Não queremos, com esta questão, insinuar que os projetos de formação que se desenvolvem nessas escolas não têm qualidade, já que não é através de listas seriadas construídas pela imprensa que poderemos ou nos atreveremos a concluir o que quer que seja sobre eles. O que pretendemos é mostrar que, sendo as lideranças e a qualidade dos professores fundamentais na vida das escolas, não são estes fatores que, só por si, permitem que se vença o concurso anual que os jornais têm vindo a promover.
Admitimos que são fatores fundamentais para que as escolas avaliem de forma séria o que fazem, definam estratégias em conformidade e façam uma gestão de recursos adequada aos desafios e exigências com que se confrontam. Esta é que é a reivindicação que teremos de fazer, num tempo em que a ação formativa das escolas não poderá ficar refém da obsessão avaliadora, sobretudo, quando esta se constitui como obstáculo ao desenvolvimento daquela.
A recusa dos rankings terá que ser compreendida, por isso, quer à luz de um tal propósito, quer à luz do distanciamento que estabelecemos face a todos aqueles que sonham instituir a racionalidade subjacente à defesa das parcerias público-privadas no governo e gestão das escolas públicas.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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