A revista Presença Pedagógica atinge seu centésimo número. É, de fato, um marco digno de ser comemorado. A primeira edição é de janeiro-fevereiro de 1995. A revista testemunhou o movimento da educação brasileira na virada do século XX para o século XXI. Cabe, pois, examinar, ainda que em largos traços, as principais características dessa passagem, tomando como eixo a perspectiva da política educacional e tendo como vetores a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Plano Nacional de Educação (PNE).
O lançamento da revista coincidiu com os preparativos para a posse de Fernando Henrique Cardoso (FHC) na Presidência da República para dar início ao seu primeiro mandato. Nesse momento, o projeto da nova LDB se encontrava no Senado Federal, onde assumiu a forma do Substitutivo Cid Sabóia, que foi aprovado em 30 de novembro de 1994, na Comissão de Educação, e encaminhado ao Plenário do Senado em 12 de dezembro do mesmo ano. Empossado o novo governo, iniciava-se também uma nova legislatura, tendo o senador Beni Veras (PSDB-CE) apresentado requerimento pedindo o retorno do projeto de LDB à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Essa “manobra regimental” permitiu que o senador Darcy Ribeiro, assumindo a relatoria do projeto, apresentasse um novo substitutivo, que veio a ser aprovado no Senado e, retornando à Câmara dos Deputados, converteu-se na nova LDB, aprovada em 17 de dezembro de 1996 e promulgada em 20 de dezembro do mesmo ano. Como assinalei no livro «A nova lei da educação» (2011), o Ministério da Educação preferiu esvaziar o projeto aprovado na Câmara dos Deputados e incorporado no Senado ao Substitutivo Cid Sabóia, optando por um texto genérico, uma “LDB minimalista”, na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro. Esse caráter genérico da nova LDB estava em consonância com a política educacional que o MEC procurou implementar nas duas gestões FHC, entre 1995 e 2002, caracterizada pelo empenho em reduzir custos, encargos e investimentos públicos, buscando, senão transferi-los, ao menos dividi-los com a iniciativa privada e as organizações não governamentais. É isso que se tenta traduzir nas ditas parcerias público-privadas. Aliás, tratei disso na entrevista que concedi à Presença Pedagógica, publicada no número 13, de janeiro e fevereiro de 1997, significativamente denominada “Educação não é filantropia”. Nessa entrevista, retomando a análise feita no livro «A nova lei da educação», mostrei que a referida orientação aparecia insistentemente e com toda a clareza nas mais variadas ações do MEC, o que ilustrei com algumas frases da campanha Acorda Brasil. Está na Hora da Escola. Por exemplo: “Os professores precisam ter condições para se atualizar; entre outras coisas, você pode: patrocinar a realização de palestras, seminários e cursos de atualização nas escolas, doar livros e assinaturas de jornais e revistas para uso dos professores. O trabalho didático utiliza diferentes materiais; entre outras coisas, você pode: doar máquinas de escrever, videocassetes, projetores, televisores, computadores e impressoras, doar equipamentos de esporte, promover a criação de bibliotecas, ludotecas e videotecas...” etc., etc. Há outras pérolas do mesmo teor, chegando-se mesmo a apelar à prestação de “auxílio administrativo à escola” e pedindo, inclusive, para “ajudar as crianças com dificuldade, ministrando aulas de reforço”. À luz do exposto, a impressão que ficava era que a solução das questões educacionais, em lugar de dever do Estado, como está inscrito em nossa Constituição, estava afeta à boa vontade da população, sugerindo um regresso à época em que a educação, ao invés de responsabilidade pública, era considerada assunto da alçada da filantropia. Expressei essa regressão no texto O Estado e a promiscuidade entre o público e o privado na história da educação brasileira, primeiro capítulo do livro «Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira» (2010) com a pergunta: Educação pública: dever de todos, direito do Estado?. Essa tendência do poder público de transferir a responsabilidade pela educação para o conjunto da sociedade, guardando para si o poder de regulação e de avaliação das instituições e dos resultados do processo educativo, operou uma inversão no princípio constitucional. Dessa forma, a educação, de “direito de todos e dever do Estado”, como está inscrito na Constituição Federal, passa a ser “dever de todos e direito do Estado”. Além das leis e decretos do governo federal, portarias do MEC e pareceres e deliberações do Conselho Nacional de Educação regulamentando dispositivos da nova lei, deve-se destacar especialmente o parágrafo primeiro do artigo 87 das Disposições Transitórias da LDB: “A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos”. Portanto, até 23 de dezembro de 1997, o MEC deveria encaminhar ao Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação, de caráter decenal. De fato, com um pequeno atraso deram entrada no Congresso dois projetos: o da oposição, em 10 de fevereiro, e o do governo, em 12 de fevereiro de 1998. No dia 9 de janeiro de 2001, foi sancionado pelo Presidente da República o texto do Plano Nacional de Educação aprovado pelo Congresso Nacional, dando origem à Lei n° 10.172, publicada no Diário Oficial da União de 10/01/2001. Dir-se-ia que, com esse ato, estaria completo o processo de reorganização da educação brasileira. Com efeito, aprovada a nova LDB, vários de seus dispositivos foram sendo regulamentados. Entretanto, a peça mais importante e, sem dúvida, mais complexa desse processo de regulamentação dizia respeito ao Plano com validade de dez anos. A promulgação dessa lei seria, pois, um bom motivo para comemoração, uma vez que a educação brasileira passaria a contar, a partir daí, com um instrumento global de orientação das políticas educativas consubstanciado no referido plano. Entretanto, o desfecho resultou melancólico, como o fora também a aprovação do projeto que resultou na atual LDB. Na verdade, não houve comemoração e nem poderia haver, à vista dos vetos apostos pelo Presidente da República ao texto aprovado pelo Congresso Nacional. Foram vetados nove dispositivos, afetando todos os níveis e modalidades de ensino. O principal foi aquele que previa o aumento gradativo do orçamento destinado à educação até atingir, ao término dos dez anos de vigência do Plano, 7% do Produto Interno Bruto (PIB). Indepen dentemente da apreciação que se faça sobre as razões invocadas para os vetos, o que se patenteia nesse ato é a falta de vontade política do governo para traduzir em incremento orçamentário a alegada prioridade concedida à educação. Assim, à frustração que acometeu a comunidade educacional quando da aprovação da LDB somou-se uma nova decepção, expressa na sanção com vetos do texto do Plano Nacional de Educação. O artigo 87 da LDB instituiu a década da educação, com início após um ano de sua publicação. Portanto, a referida década estendeu-se de 23 de dezembro de 1997 a 22 de dezembro de 2007, ano em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dava início ao seu segundo mandato. A década da educação foi imaginada por Darcy Ribeiro como um momento em que a educação receberia atenção especial; em que ela seria a prioridade da sociedade e do Estado; em que, finalmente, o tão repetido discurso que exalta o poder da educação teria a sua contrapartida prática. Mas, como levar a sério essa proclamação se nem o corpo da lei e nem o título Das Disposições Transitórias especificaram o montante de recursos que deveria ser destinado à educação para que ela viesse a corresponder às grandes expectativas nela depositadas? Se não quisermos ser pessimistas, o que nos levaria a considerar que a proclamada “década da educação” não passaria de mais uma tirada demagógica, só nos cabe concluir que a LDB confiou ao próprio Plano Nacional de Educação a garantia de êxito da “década da educação”. Fixando as diretrizes e metas, o Plano especificaria também os recursos necessários para que as metas fossem atingidas ao longo dos dez anos de sua vigência. Verifica-se, assim, que a lei relativa ao Plano Nacional de Educação reduziu-se a uma peça de ficção. E isso não apenas pelos vetos que a tornaram uma mera carta de intenções. Mesmo nessa condição de documento indicativo das intenções que deveriam guiar as ações no âmbito das políticas educativas, o Plano ficou inteiramente esquecido. Ninguém, nem mesmo o governo, o tomou como referência, a tal ponto que os próprios dispositivos da lei que o instituiu foram descumpridos por inteira omissão e esquecimento. Veja-se o caso, por exemplo, do artigo 6o: “Os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios empenhar-se-ão na divulgação deste Plano e na progressiva realização de seus objetivos e metas, para que a sociedade o conheça amplamente e acompanhe sua implementação”. Quem conhece o Plano? Onde e como se deu sua divulgação? Outro exemplo: o artigo 3º da mesma lei determinou a exigência de avaliações periódicas da execução do Plano Nacional de Educação, estabelecendo, no parágrafo 2º: “a primeira avaliação realizar-se-á no quarto ano de vigência desta Lei, cabendo ao Congresso Nacional aprovar as medidas legais decorrentes, com vistas à correção de deficiências e distorções”. Ora, o quarto ano de vigência da lei se encerrou em 9 de janeiro de 2005 e passou inteiramente em branco, ignorado pelo Congresso Nacional. E não foi por falta de advertência. Ao participar do Seminário Nacional sobre Educação Superior na Câmara Federal, em 2 de junho de 2004, lembrei aos deputados presentes que nos encontrávamos exatamente no quarto ano de vigência do PNE, impondo-se a necessidade de sua avaliação, nos termos do parágrafo 2º do artigo 3º da Lei no 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Terminou, pois, de modo melancólico a década da educação. Seu principal instrumento, o Plano Nacional de Educação, apesar de ter contado com uma sobrevida de três anos, forneceu uma imagem eloquente do fracasso da década, ao completar também seu prazo de vigência em 9 de janeiro de 2011: permaneceu letra morta. Nada significou. O ano de 2010 ocupou posição central no calendário da educação brasileira. Entre 28 de março e 1º de abril realizouse a Conferência Nacional de Educação (CONAE), cujo tema central articulou dois aspectos fundamentais na organização educacional do País: o Sistema Nacional de Educação e o Plano Nacional de Educação. A questão do Sistema Nacional de Educação se impôs à agenda da educação brasileira já a partir da realização, em abril de 2008, da Conferência Nacional da Educação Básica (CONEB). Ali se ventilou a ideia da organização de um sistema nacional de educação básica, mas logo se advertiu que, na verdade, a Educação Básica não constitui um sistema, em sentido próprio, mas se põe como parte do Sistema Nacional de Educação. Isso porque a Educação Básica é impensável sem a Educação Superior, a começar pela prosaica constatação de que os professores da Educação Básica são, via de regra, formados em nível superior. Era preciso, pois, pensar o significado do sistema da educação como um todo e discutir a proposta de sua construção e implantação. E, para isso, previu-se a realização da CONAE. Definido o tema central, quando se desencadeou o processo de preparação da CONAE, por meio da realização das conferências municipais ou regionais e estaduais de educação, verificou-se a conveniência de aproveitar-se o momento da CONAE para se discutir, de forma articulada com a questão do Sistema Nacional de Educação, o problema do Plano Nacional de Educação. Tal encaminhamento se impunha, até mesmo por uma questão prático-política, relativa ao calendário. Com efeito, o Plano Nacional de Educação, que entrou em vigor em 10 janeiro de 2001, com validade de dez anos, se encerrou em 9 de janeiro de 2011. Portanto, era necessário providenciar, já em 2010, um novo projeto de PNE a ser encaminhado ao Congresso Nacional, com vistas a sua aprovação em tempo hábil para entrar em vigor a partir de 10 de janeiro de 2011. Em 15 de dezembro de 2010 o Ministério da Educação encaminhou ao Congresso Nacional sua proposta de Plano Nacional de Educação, que se converteu no Projeto de Lei n. 8.035/2010, ora em tramitação no Parlamento. Infelizmente, constatamos que esse projeto não começa bem. Isso porque a proposta de PNE enviada pelo MEC ao Congresso Nacional prevê atingir, ao longo dos dez anos da vigência do Plano, o mesmo percentual de 7% do PIB. Ora, essa meta fora fixada no PNE aprovado em 2001 para ser atingida em 2010. Vetada pelo então presidente FHC, ela agora retorna, porém postergada para 2020. É necessário, enfim, uma grande mobilização dos educadores e de toda a população visando fazer reverter a orientação atual da política educacional, ajustando-a ao lugar de prioridade reservado à educação na sociedade contemporânea.
Dermeval Saviani
REFERÊNCIAS / SUGESTÕES DE LEITURA
Dermeval Saviani. “Educação não é filantropia”. Presença Pedagógica, Jan./Fev., 1997. «PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação: análise crítica da política do MEC». Autores Associados, 2009. “O Estado e a promiscuidade entre o público e o privado na história da educação brasileira”, in Dermeval Saviani (Org.). «Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira». EDUFES, 2010. «A nova lei da educação (LDB): trajetória, limites e perspectivas», 12ª ed. Autores Associados, 2011. «Da nova LDB ao FUNDEB», 4ª ed. Autores Associados, 2011
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