O ser humano que vai à Escola “arrisca-se” a viver moldado por ideais que, racional e teoricamente, lhe são alheios, mas que emergem destemidamente e sem cautela no momento mais inesperado. É aí que o Currículo se manifesta como Poder. Mesmo aqueles que ao longo da vida foram pondo em causa a aceitação pura e simples do status quo, os saberes dominantes, são “rasteirados” pela interiorização do saber inquestionável, da lógica inabalável, do mundo estático. E a direita marca pontos...
Em plena pré-campanha eleitoral, um opinion maker que se diz de esquerda (por acaso jornalista, mas que de profissão podia ser outra coisa qualquer) argumenta que a não presença dos líderes dos partidos nas reuniões com a chamada troika onde se negociou a dívida supostamente contraída pelo nosso país (quem é/somos “o nosso país”?) é impensável; e continua: porque quem concorre a primeiro-ministro não pode, perante o povo, esquivar-se a determinadas responsabilidades. Há várias ideias subjacentes a este discurso, naturalmente. Entre outras: a assumpção do fatalismo, sem qualquer outra opção, de uma dívida a contrair dentro de um modelo de funcionamento económico capitalista neoliberal; a escolha arbitrária do vocábulo “povo” para plurissignificações várias, desde os que negoceiam indiferentemente débitos da banca aos que ajustam dívidas da população em geral; ou, finalmente, a ideia de um modelo de governação obrigatoriamente hierárquico, em que há sempre alguém que superintende, manda, está “acima dos outros”, de forma mais ou menos carismática. E, no entanto, estes mesmos empreiteiros de opinião, pelo menos os que têm alguma formação, académica ou de outro tipo, conhecem bem outras formas económicas igualmente susceptíveis de singrar, outras formas de constituição empresarial e de organização social. Sabem-no teoricamente, de uma forma peculiar, aturada, engenhosa, racional; mas quando se trata de falar rapidamente, espontaneamente, o que vem ao de cima é todo o velho discurso enformado por um currículo escolar antigo, com mais de um século, ainda por extinguir, apesar de tantos esforços, sobretudo desde a Escola Nova, nos anos 20 do século XX. Acontece a muito boa gente. Esse currículo a que hoje chamamos tradicional é (ainda) concebido para moldar as pessoas, quiçá para as modificar. Persiste nas nossas sociedades, mais ou menos mascarado. O ser humano que vai à Escola “arrisca-se” – mesmo que faça um grande esforço no sentido contrário – a viver moldado por ideais que, racional e teoricamente, lhe são alheios, mas que emergem destemidamente e sem cautela no momento mais inesperado. É aí que o Currículo se manifesta como Poder; o indivíduo até tem “ideais de esquerda”, mas é atraiçoado pela “forma” que o envolveu no período de “gestação”. Isto é: mesmo aqueles que ao longo da sua vida foram, pouco a pouco, pondo em causa a aceitação pura e simples do status quo, dos saberes dominantes, são “rasteirados” por essa interiorização do saber inquestionável, da lógica inabalável, do mundo estático. E a direita marca pontos... Porque a Escola é algo demasiado importante (para todos, de acordo com diferentes pontos de vista...), onde a democracia mexe muito devagarinho... Chega-se assim – num salto que só pode ser aceitável num artigo com o espaço que este tem que ter obrigatoriamente – à questão da Cultura: o domínio simbólico, que define o dominante como sendo o excelente: valores, rotinas e práticas de uma classe. E tudo o que for diferente é condenado à exclusão. Imediatamente e até com alguma rispidez. Porque nem sequer é perceptível para a maioria que foi “enformada” na cultura dominante presente no Currículo. Num destes dias, numa das unidades do Centro Hospitalar de Médio Tejo, a propósito de uma informação, que teria sido prestada por um médico cerca de três horas antes a um familiar de um doente que se encontrava na urgência (e que então não correspondia ao procedimento que estava a ser processado), uma enfermeira dizia ao acompanhante do enfermo: “Mas com que médico falou? Ai foi com esse? Isso é um interno! Os internos sabem lá! Não percebem nada! O que interessa é o que está aqui no papel”. Nova reflexão sobre o Mundo em que vivemos. Uma luta tão grande no tempo da ditadura de Salazar (ainda esta jovem enfermeira não tinha nascido) pelos direitos elementares das enfermeiras, trabalhadoras da saúde; anos e anos em democracia a lutar-se pelo direito a uma formação condigna, nomeadamente por uma formação em licenciatura, com tudo o que isso teve e tem em termos de impacto social e de importância para a profissão, porque um país que respeita e valoriza os seus profissionais de saúde é um país com bons profissionais nessa área e com um bom serviço nacional que – haja o que houver – deve continuar. E esta senhora ali a baralhar os contravalores todos! Voltando ao currículo. Aquela senhora enfermeira certamente não se licenciou para se “dar ao luxo” de chegar junto de um familiar de um doente e o “informar” de que o médico é interno ou não e de que, por isso, sabe mais ou menos; mas, certamente, o capital cultural que pensa ter adquirido com a sua licenciatura, eventualmente no currículo da escola superior de enfermagem, ou simplesmente no processo de representação social permite-lhe, de uma forma enviesada, esse “estatuto” pouco digno. E até o familiar do doente deu consigo, de repente, a pensar se não estaria de uma forma subjectiva e inconsciente a não permitir que uma enfermeira (“tradicionalmente” de uma profissão “socialmente inferior”) tecesse críticas a um jovem médico. Mas não. Trata-se tão só de questões de dignidade humana. Questões de identidade humana. Questões de Currículo. Por isso é necessário pensar e reconstruir o Currículo em cada espaço e em cada tempo; da Escola e desta “estranha” forma de vida.
José Rafael Tormenta
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