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A propósito de Becker e do pub de Bernstein

Numa época em que a sociologia da educação é reiteradamente confrontada com a questão da “utilidade”, os “novos pedagogos” do neoliberalismo, os prosélitos do empreendedorismo competitivo, os que convergem nos ataques às ciências da educação com os que desdenham dos “filhos de Rousseau”, não gostarão nada que ela demonstre que está longe de ter esgotado a sua contribuição, ou de ter perdido a sua relevância.

Para aproveitar e suavizar uma longa e recente viagem para São Paulo, resolvi trazer à mão uma bela tradução da editora Siglo Veintiuno, de Buenos Aires, do livro «Tricks of the Trade», de Howard Becker, um dos meus sociólogos preferidos. Para além de ser uma referência do interaccionismo simbólico e um dos expoentes da famosa Escola de Chicago, Becker é um autor extremamente divertido na forma como fala da sua vida de investigador e, a esse propósito, vai tecendo considerações metodológicas sobre os Trucos del Oficio.
Sempre me surpreendo ao ler ou reler Becker. Nele encontrei, por exemplo, fugidias remissões para Pierre Bourdieu e para Basil Bernstein, a partir das quais não pude deixar de suspeitar que tenha havido interessantes porosidades entre a (velha) nova sociologia da educação e o interaccionismo simbólico. Mas, confesso a minha ignorância, sei pouco sobre essa relação. Talvez isso seja, ou pareça ser, óbvio, mas nunca me preocupei com o assunto, pelo que não sei responder imediatamente à questão. O que sei é que Bernstein – autor de contributos científicos importantes, e bastante difícil de ler para os que não estão familiarizados com a sua obra e as especificidades da sua linguagem – marcou à sua maneira a chamada nova sociologia da educação e influenciou muitos trabalhos de investigação, em diferentes áreas, do Português às Ciências Naturais, como aconteceu, neste último caso, com os estudos sociológicos da sala de aula, há anos incentivados bernsteinianamente pela professora Ana Maria Morais.
Mas gostei de ouvir falar também do lado mais beckeriano de Bernstein, que não deixava de frequentar o seu pub preferido em Londres – no qual passei sozinho uma tarde, bebendo cerveja, observando etnograficamente o ambiente e as personagens e sentindo alguma estranha melancolia por não ter sabido aproveitar ou beneficiar, mais cedo, da proximidade e vitalidade de algumas das figuras incontornáveis da sociologia da educação. Foi, aliás, uma delas (Michael Young) que me acolheu recentemente para um curto período de sabática, no final do (típico) inverno de Londres. Algumas contingências da vida e as barreiras linguísticas, associadas a uma falta de estratégia pessoal (e talvez também institucional), fizeram-me adiar essa rica experiência cultural e intelectual.
Ao contrário, muitos dos que saíram do país por algum tempo, para investigar e elaborar as suas teses de mestrado ou doutoramento, acabaram por fazer uma carreira bem diferente e, em muitos casos, estabeleceram pontes e sinergias que produziram (e continuam a produzir) frutos individuais e académicos.
Mas quero voltar a Becker, que começou por ser músico de jazz nos bares de Chicago, e que lembra, no livro sobre os Trucos del Oficio, o que lhe trouxeram esta e outras experiências com «Outsiders» (título de uma das suas obras mais marcantes no campo da etnografia e da sociologia do desvio). Foi a propósito destes contributos de pesquisa e da sua perspicácia teórico-conceptual que Gilberto Velho convidou Becker a visitar e leccionar pela primeira vez no Rio de Janeiro, aonde voltou noutras ocasiões.
A obra «Desvio e Divergência», organizada por aquele importante antropólogo brasileiro, contém, como se constata no próprio título, duas leituras possíveis para os comportamentos que fogem às normas sociais dominantes. Na esteira de Sedas Nunes, prefiro o termo “divergência”, para fugir à conotação funcionalista e pejorativa de desvio, tal como este autor adverte nas suas famosas «Questões Preliminares Sobre as Ciências Sociais».
Numa época em que a sociologia da educação é, reiteradamente, confrontada com a questão da utilidade (ou com algumas tentativas de subalternização estratégica, mesmo em espaços institucionais de inserção académica originária), talvez um olhar (sociológico) mais sistemático e aprofundado aos reais contributos da etnografia e da sociologia da Escola e da sala de aula possa ter toda a pertinência.
Mas os novos pedagogos da economia e da empresa neoliberal, os prosélitos do empreendedorismo competitivo e tecnocrático e todos os que somam os seus ataques às ciências da educação, convergindo com os conservadores que desdenham dos filhos de Rousseau, não gostarão nada que a sociologia da educação demonstre – pelo estudo de novos e pertinentes objectos, ou mesmo pelo (retorno ao) estudo das práticas educativas em diferentes contextos de aprendizagem e de interacção pedagógica – que está longe de ter esgotado a sua contribuição científica, ou de ter perdido a sua relevância social e educacional.

Almerindo Janela Afonso


  
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