Santiago é hoje uma cidade que nega seu passado. A política implícita nas ruas parece tão eficiente e pragmática quanto a da gestão dos grandes negócios do capital. Que sociedade ensina Santiago hoje? Qual o projeto de mundo que propõe? Como educar sem memória?
O meu país foi sempre vários países, alguns totalmente antagônicos, e embora a intrínseca colonialidade da contingência política me obrigasse a viver sob a hegemonia deste ou daquele, sempre soube encontrar, nos seus interstícios, o país da minha pertença. Com recurso a um complexo sistema de significados e sentidos que intercambiavam seus valores de uso segundo as relações em tensão, “achava-me” com relativa facilidade, constituindo a minha dupla consciência crioulizada [W.E.B. du Bois; Édouard Glissant]. A estrada do aeroporto ao subúrbio de Santiago me chamou a atenção. Uma moderna via expressa anunciava o redesenho da urbe, tido como parte do “progresso que o modelo trouxe ao país”. “A terra do bip”, eu teria batizado o Chile que então começava a (re)conhecer. De tantos em tantos metros um bip anunciava o encargo no cartão de crédito do motorista. Vias como esta, que circunda toda a capital, cruzam-na mesmo por baixo do principal rio, o Mapocho, unindo o centro da cidade ao bairro financeiro e ao nobre. Um olhar atento descobre vias paralelas que acompanham seu traçado com menos infraestrutura e uma quantidade considerável a mais de trafego. Nessas, ônibus lotados do sistema de transporte público, TranSantiago, acolhem as massas de trabalhadores em troca do respectivo bip no cartão de cada um. Por sua vez, o Metrô, moderno e eficiente, cobre quase toda a capital. Junto dele, a cidade mudou sua configuração, fazendo surgir nova atividade comercial em bairros periféricos, onde hoje se erguem imponentes shopping centers. A propaganda e o clima de consumo são onipresentes no novo Chile, como cumprindo as profecias de Ridley Scott em “Blade Runner” e George Orwell, em “1984”. Assim também é a propaganda das universidades, privadas ou tradicionais – o conceito de educação pública foi banido do debate, assim como a idéia de haver um direito à Educação, que por sua vez bane qualquer “serviço” de Ensino Superior não pago. Em 2010, a chamada “indústria” da Educação faturou mais de 15 bilhões de dólares americanos. O Chile da minha memória, do meu imaginário, alimentou meu desterro casual e prolongado com imagens de um povo cindido, mas apaixonado, engajado em diversos projetos de se construir como nação, articulador de sonhos coletivos, amante da sua violenta, contrastante e bela geografia, paisagem rebelde como seu caráter historicamente libertário, gente de um romantismo nobre e espartano. As fachadas da velha Valparaíso chegaram a ser ícone de uma cultura encantada pela capacidade de homens e mulheres de reinventar pobreza material em dignidade e poesia. Santiago, com quase quinhentos anos e mais de seis milhões de habitantes, tem inscrita nas suas ruas e construções as principais lutas que fizeram a nação: as epopéicas e as cotidianas, as que encheram páginas de livros e telas de cinema e as que, invisibilizadas pelos devaneios do poder, se erguem passo a passo, construindo a vida de um povo. Na juventude, ao caminhar pelos bairros, sempre pensava como desvincular a estética das velhas ruas dos sonhos que se teciam silenciosamente nas suas casas? Sem dúvida, aquela cidade me ensinava. Dessa vez, fui caminhar pelas ruas de Ñuñoa, o meu velho bairro, em busca de memórias que alimentassem novos futuros possíveis. Caminhei horas, perdido e isolado na fronteira entre as ruas da minha memória e as que ora encontravam-se sob os meus pés. No lugar, arrogantes torres de apartamentos, condomínios residenciais de luxo e novos empreendimentos imobiliários. Onde tinham ido parar, em tão pouco tempo, os velhos vizinhos? Onde seus sonhos, seus projetos de vida, suas lutas? Todo retorno é um revisitar – conceitos, histórias, territórios e sujeitos. A cada volta surgem novos estranhamentos, novos olhares. Agora, uma relação íntima entre a abrupta mudança estrutural da cidade e os usos que as pessoas fazem dela surgia, chamando-me a atenção sobre sua incidência na própria noção de cidadania e democracia, escancarando um paralelo entre a cidade oculta e a construção de um discurso sobre a realidade, tecnocrático e pragmático, que oblitera conceitos outrora fundamentais para se pensar a sociedade. Com traçados de modernidade eurocêntrica, colocam-se os limites do que é possível ser proposto ou mesmo sonhado. O ensurdecedor silêncio da nova metrópole, que se levanta sobre o túmulo da própria memória, ostenta a sua organização do espaço urbano homóloga ao discurso neoliberal que lhe deu origem e razão de ser. Santiago é hoje uma cidade que nega seu passado. A política implícita nas ruas parece assim tão eficiente e pragmática quanto a da gestão dos grandes negócios do capital. Senti urgente lembrar os debates sobre a cidade educadora, na década de 1990: que sociedade ensina Santiago hoje? Qual o projeto de mundo que propõe? Como educar sem memória?
Cláudio Barría Mancilla
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