Feito o balanço do exercício que dominou o “inverno do nosso descontentamento”, centrado na retórica da campanha presidencial, a situação líquida já apurada remete-nos para a reflexão de um reputado mestre das Ciências Sociais, Pierre Bourdieu («O Poder Simbólico»), como preparação para o complicado “exame” das palavras proferidas pelos protagonistas.
“O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”. “A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios de hierarquização: as fracções dominantes, cujo poder assenta no capital económico, têm em vista impor a legitimidade da sua doutrinação quer por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores os quais só verdadeiramente servem os interesses dos dominantes por acréscimo”. Sendo as palavras uma emanação dos pensamentos, o “exame” não será fácil para quem, não julgando bastante interpretar contabilisticamente os números do “balanço” (saber quem ganhou e quem perdeu) considerar também que eles podem ser sinais do estado anímico de um país que perdeu a esperança em personalidades carismáticas e pode estar permeável a uma desagregação das energias restauradoras. Foi um facto, face ao que a maioria dos votantes se eximiu de manifestar o seu sentimento, abstendo-se ou votando em branco. E os que votaram revelaram tal dispersão de convicções, que o mínimo que se pode inferir é que nenhum dos candidatos à presidência da República inspirou à generalidade dos portugueses a plena representação do “poder simbólico” que é, no dizer de Bourdieu, “um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce um crédito com que ele o acredita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança”. Todos os actores prometeram restaurar as esperanças de um país em crise, para uns defrontando os avatares de uma Europa também em crise, mas imaginando-a passageira, para outros um Portugal gerido por um governo incapaz de reconhecer e explorar as potencialidades nacionais, que significam ora pelo aproveitamento da terra, do clima e do mar, ora pela capacidade de resiliência do povo. Mas o “exame” das palavras (flatus vocis) não poderá deixar de ter em conta a interdisciplinaridade no julgamento, de tal modo se misturam preposições da História, da Sociologia, da Antropologia, da Economia, da Psicologia e, convenhamos, da Psicanálise – esta, para ajudar a entender por que os profissionais da economia e da política, que vão sendo os regentes da retórica, continuam a rever-se no espelho de Narciso... Parece, pois, que é altura de mudar o azimute cultural de dirigentes e dirigidos, convocando, como que em último recurso, o patamar mais elevado do conhecimento (a Universidade), para que, parafraseando António Nóvoa numa recente entrevista ao «Jornal de Letras», não sejam sempre os mesmos cronistas e opinion makers a falar sobre tudo e mais alguma coisa, sem a independência de pensamento que a autonomia universitária concede, para, como centro autónomo de cultura, assumir a responsabilidade do estudo metódico dos problemas nacionais. O reitor da Universidade de Lisboa, especialista na área da Educação, é realista e desaprova a simples lógica departamental do ensino universitário, defendendo como “diferença” a necessidade de “nos tornarmos mais interventivos, escrever mais, participar mais. (...) As universidades deixaram-se resvalar para uma situação de máquinas de triturar o tempo das pessoas, quase incapaz de produzir reflexão válida fora do seu campus. Nós, universitários, temos de nos consciencializar que temos de nos proteger mais para que venhamos a ser mais fortes”. Mas proteger, também e sobretudo, das insularidades conventuais e das seduções dos falanstérios... Iríamos mais longe na incumbência das responsabilidades investidas contra o statu quo e o laissez faire, laissez passer chamando à colação a escola básica, porque é nesta que se inicia o Cidadão e o Patriota e onde se deve assumir (por vezes defrontando a Família e a Rua) que instruir sem educar, dificilmente produzirá Homens de corpo inteiro. A “crença na legitimidade das palavras” pronunciadas durante a recente campanha eleitoral foi posta à prova. O próximo “exame” dir-nos-á, como Eça de Queiroz, que “a alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e para cercar de lenda”. Ou não...
Leonel Cosme
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